O presente do futuro
por Fábio Andrade

Em Fevereiro de 1960, no artigo Decepção e Esperança, Paulo Emílio Sales Gomes definia: “A platéia do cinema brasileiro se recruta, por um lado, nos setores mais rústicos do público, por outro, no quadros da corporação e, finalmente, numa minoria intelectual militante”. De lá pra cá, com a chegada e o domínio da televisão, parece seguro dizer que a primeira camada enumerada, se não desapareceu de todo, hoje se guarda a fenômenos isolados que, em geral, repetem a experiência da própria televisão. Voltemos a Paulo Emílio: “A convicção do terceiro grupo não é profunda, e o esforço para valorizar o que anda por aí é sobretudo assumido em nome do que há de vir”. A experiência crítica está, inevitavelmente, situada neste grupo – com grau variante dessa tal convicção, que o próprio Paulo Emílio não se furtava em admitir.

Nesses cinquenta anos, o cinema brasileiro mudou muito, o que torna uma certa condescendência apontada por Paulo Emílio hoje um tanto anacrônica. Ainda assim, o diagnóstico exprime um binômio que ainda perpassa a atividade crítica. Na Cinética, o lugar escolhido – e longe de estar livre de confusões e compreensões atravessadas – parece ser a busca de alguma clareza quanto a esses dois vetores ainda fortemente presentes: a tentativa de olhar criticamente para o presente sem, com isso, anular um entusiasmo possível com um futuro que já começa a ser indicado - como reitera a entrada no nesses dias de mais uma de nossas coberturas do Festival Brasileiro de Cinema Universitário.

Para a história, não basta aos filmes apenas existir. Como os fatos, os filmes precisam ser organizados, situados, destacados e pensados dentro de uma grafia, uma escrita que testemunhe essa existência – o que, naturalmente, é tarefa atravessada pelas injustiças que vêm com toda responsabilidade. Tomando a escrita como testemunho desse entusiasmo pelo porvir, a responsabilidade no presente é outra. Nos últimos anos, nos ocupamos em pensar os filmes brasileiros (mas não só) dentro de um contexto histórico e artístico mundial, sem fingir que não falávamos do Brasil, mas sabendo que não havia contribuição duradoura a ser dada que não estivesse profundamente ancorada em um rigor de avaliação e proposição– o que não impedia que sentíssemos o puxão quando os filmes nos pegavam pela gola da camisa. Essa dedicação regular, naturalmente, não se protege das irregularidades inerentes a todo processo criativo. Mas ela nos impõe um rigor que demanda, inclusive, que cada filme seja visto – na medida de um possível impossível – a partir de suas próprias particularidades.

Bastou o frio apertar e começamos a perceber que puxamos o lençol até o pescoço e terminamos por descobrir os pés: no esforço do particular, há muito constatamos a ausência de textos que dessem conta desse momento de uma perspectiva mais ampla, situando essa filmografia (e não mais os filmes) em relação ao presente, e esse presente em relação à história. Tal impulso era lentamente fervido em iniciativas panorâmicas recentes nas quais estivemos mais ou menos envolvidos, como a mostra Cinema Brasileiro Anos 2000, 10 Questões, os debates da Semana dos Realizadores, os seminários gerais da última Mostra de Tiradentes, a mais recente mostra Cinema de Garagem. Ainda assim, os textos, quando existiam nesses contextos, partiam de recortes muito concretos, confinados às coberturas de festivais e aos catálogos de mostras.

É justamente esse desejo de generalização, de uma certa grosseria, que começa a render frutos com a publicação do artigo Em busca do futuro. Escrito pelo pesquisador, professor e conservador de filmes Hernani Heffner – figura de referência na formação de vários dos críticos hoje atuantes na revista – o texto faz, com a clareza e a consequência que são características ao autor, um balanço dos últimos anos do cinema brasileiro, a partir de um conjunto muito variado de filmes, em relação a outros momentos do cinema brasileiro e seu embate com a história política do país. É, enfim, um texto que se dispõe a olhar este momento como algo particular, sabendo que para isso será necessário conectar filmes díspares, reunidos sob características compartilhadas ou não, que colocam a efemeridade do presente em perspectiva. 

O texto de Hernani Heffner impõe a retomada de uma outra máxima de Paulo Emílio, cristalizada no mesmo Decepção e Esperança: “Convém lembrar, ainda, por menos agradável que se considere a asserção, que o cinema brasileiro nos exprime e nos revela”. Por um lado, a vivência presente baseada em um entusiasmo pelo futuro pode gerar uma crítica que se ocupa apenas de um cinema que não existe. O cinema brasileiro de hoje existe, e mesmo no mais propositivo pensamento crítico é preciso não ignorar essa existência, sob o risco de a história passar sob nossos pés enquanto nos colocávamos em passeata por um futuro de ficção científica ou um passado de Museu. Por outro lado, a partir do texto de Hernani Heffner, uma pergunta parece inevitável: quão tênue é o limite entre exprimir o presente e apenas refleti-lo, com o fascínio e a impotência reluzente de um espelho?

É justamente aí que seu artigo coincide com o lançamento brasileiro de Memórias de Xangai, mais novo filme de Jia Zhang-ke. De Em busca do futuro: “O Brasil era o país do futuro, uma sempre adiada decolagem rumo à supermodernidade, que afinal chegou de alguma forma neste início de século XXI, quando não somos mais um país pobre, envergonhado de si mesmo, subdesenvolvido, do ‘terceiro mundo’, mas uma nação emergente no novo cenário internacional, um integrante do G-20, do BRIC, da nova elite mundial”. Se o país, hoje, está efetivamente em uma outra posição, como a arte brasileira tem desenhado, criado e manifestado nossos desejos de futuro? A China ocupa posição parecida e cineastas como Jia Zhang-ke há anos se colocam na delicada fronteira entre a reflexão do mundo existente e a proposição de um mundo porvir.

Memórias de Xangai
parece encontrar o lugar de maior justeza na recente incursão documental do diretor, pois combina a arqueologia do passado com uma ocupação presente do mundo que, na verdade, se faz como proposta de futuro. O lançamento comercial do mais recente trabalho de Jia Zhang-ke serviu como convite para que voltássemos novamente os olhos para sua obra, com uma perspectiva que não era possível no momento em que seus filmes nos encantaram pela primeira vez. Por mais que tenhamos dedicado atenção aos seus trabalhos mais recentes, a ainda curta vida da Cinética deixava uma lacuna justamente no período mais impactante de sua obra até agora, que vai até Em Busca da Vida, e que tentamos começar a sanar agora. Seja pela coreografia imposta ao mundo em Plataforma, Prazeres Desconhecidos e In Public, ou pela intervenção mais flagrante nas animações de O Mundo, no CGI de Em Busca da Vida e nas reencenações deste Memórias de Xangai, Jia Zhang-ke encontra um equilíbrio preciso entre o conhecimento do passado, o registro historiográfico do presente e a proposição ativa de um futuro. Se, à crítica, parece valer a lembrança de que não basta esperar eternamente por um cinema que não existe, ao cinema brasileiro de hoje cabe a lembrança de que a arte talvez seja o lugar mais propício para a proposição de um outro mundo e a manifestação do não-contentamento com o mundo que já existe.

Agosto de 2012

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