Jogos da cena
por Cléber Eduardo, Eduardo Valente e Leonardo Mecchi

Existe o planejamento e existe o mundo real. Pelo nosso planejamento inicial, por exemplo, colocaríamos uma retrospectiva de 2008 no ar em meados de março, mas a verdadeira invasão de eventos de força no nosso circuito de salas de repertório (CCBBs, Caixa Cultural, Cinemateca Brasileira) nos pediu que deixássemos de lado por um momento a escrita dos textos pensados, e nos jogássemos de cabeça nas salas. Depois, planejamos cobrir um evento tradicional (o É Tudo Verdade), mas a prática da freqüência a ele nos fez mudar de foco: o evento e os vários filmes nos interessaram muito menos do que apenas um filme, que valeu por todo o festival e que, este sim, nos mobilizou totalmente: Moscou, de Eduardo Coutinho, filme que naturalmente nos reivindicou uma pauta imediata, tal a força da sua visão para a redação.

Por isso mesmo, esta atualização de Cinética debruça-se, ou esparrama-se, pelo "novo" Coutinho, mas, por extensão, acerta ponteiros com o "velho" Coutinho: não aquele de Cabra Marcado para Morrer, mas com esse velho conhecido recente, que vem se auto-moldando a cada filme, mas que, desde Santo Forte, em 1999, tornou-se marco permanente e modelo involuntário no audiovisual brasileiro. O interesse manifestado por Coutinho em Cinética, se surge e se mantém por conta de suas particularidades nem sempre tão "únicas" quanto se costuma aferir para turbinar, parece interesse mais amplo por certas imagens. Ou ao menos por certas operações e efeitos. Na mesma atualização na qual expomos a eleição informal de Serras da Desordem como principal destaque de 2008 pelos redatores, certamente levando em conta a relação proposta pelo filme com a imagem-mímese (com o jogo da mimese), Moscou ganha quatro artigos nos quais em alguma medida o jogo da representação e a representação do jogo estão em jogo (sem pedidos de desculpas para o cara de pau jogo de palavras).

Também não é apenas fruto de uma coincidência da excelente (e quase excedente) agenda cinematográfica dos últimos meses que tenhamos pautas preparadas para a próxima atualização sobre a obra de Chantal Akerman e Carlos Nader. Parece haver um especial interesse, se não atração, pelas zonas de opacidade e de revelação, pelos jogos entre o factual e sua visualização, entre a experiência e a mediação (a única possibilidade no cinema), entre o sujeito narrador que se ausenta e o que se evidencia, entre a instância que organiza observações e a que se expressa nessa organização. Há em todos os acima mencionados uma relação qualquer (às vezes oposta) com o que pode estar por trás, com o que não foi visto, explicitando esse interesse contemporâneo pelo bastidor, pela construção, pelo entre e pela potência de lidar com isso (ou não). O processo como matéria, em menor ou maior medida. Em Serras da Desordem, mais que em qualquer um, esse processo é "in"corporado, não colocado no corpo.

Nas semanas seguintes, parte da redação estará em contato ainda com o mundo de Stan Brakhage e Maya Daren, cineastas que, se despertam o mesmo interesse, certamente não será pelos mesmos estímulos. Não se trata mais de revelação, mimetismo ou jogo com a imagem, mas de uma potencialização dessa imagem para dentro dela mesmo, não em relação a seu processo de construção ou de organização. Seja como for, estas semanas têm sido muito especiais e intensas nos estímulos aos nossos olhos, e o resultado natural disso é uma revista praticamente infestada de textos que, esperamos, estimulem por sua vez os leitores a voltarem a alguns destes filmes.

Leia também nossos editoriais anteriores.

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