Entre o acesso e o discurso
por Cléber Eduardo, Eduardo Valente e Leonardo Mecchi

Em entrevista à Folha de S. Paulo, Luiz Carlos Barreto se colocou contra o que denominou "farra de festivais de cinema no país". Segundo Barreto, os festivais consomem mais de R$ 70 milhões por ano, "dinheiro que poderia ser investido em dezenas de filmes". O raciocínio de Barreto, para além do mais óbvio (considerar que o número de filmes produzidos é um bem em si só para o Estado investidor), incide em pelo menos três graves erros. O primeiro é ignorar que, desses R$ 70 milhões anuais destinados à produção de festivais de cinema, menos da metade provêm de recursos da Lei Rouanet – a fatia na qual Barretão estaria de olho para financiar mais filmes. O restante vem de parcerias em bens e serviços, apoios estaduais e municipais, além de investimentos diretos de empresas privadas, gerando toda uma economia própria à realização desses eventos.

O segundo problema na argumentação de Barreto, que aqui beira à má-fé, é se colocar no direito de querer instituir um "selo de qualidade" para os festivais que deveriam ser viabilizados com recursos públicos, em detrimento de algumas "bibocas", ainda segundo Barreto, como festivais que ocorrem "até em cidades ribeirinhas do Amazonas". Existe um óbvio preconceito (que atrela localização do Festival à sua legitimidade) e pelo menos duas perguntas implícitas à sua argumentação (chamemos assim por falta de termo melhor): será que não podemos exigir, da mesma maneira, que os filmes tenham “selos de qualidade” para justificar o recebimento de dinheiro público? E quem daria esses selos, afinal, com alguma legitimidade? No entanto, é fácil verificarmos o que grande parte dos festivais citados pelo produtor como merecedores desse "selo de qualidade" têm em comum: eles distribuem, juntos, mais de R$ 1,5 milhão em prêmios aos filmes participantes.

Mas o principal problema no discurso de Luiz Carlos Barreto é o aparente desconhecimento mesmo do papel do circuito de festivais na circulação da produção audiovisual brasileira. Segundo dados do Fórum dos Festivais, esse circuito teve em 2006 um público total de mais de 2.2 milhões de espectadores. Isso significa quase 25% de todo o público do cinema brasileiro em 2007. Mas não transfiramos para os festivais o que é um problema de distribuição, como, se em uma única semana, nas cidades com festivais, a circulação dos filmes se resolvesse naquela região. Só exibir filmes não é uma questão festivaleira. O que está em jogo, nos casos dos festivais pensados como tal, é o efeito do plus. Ou a “contrapartida social”, que, a rigor, deve ser a meta dos festivais: uma atividade de contrapartida. Chamemos de plus as oficinas, os debates, os encontros entre realizadores. São situações que, quando a caravana do festival levanta a lona, deixam marcas sólidas. A movimentação do audiovisual muda de temperatura quando existem festivais e cursos específicos de audiovisual em uma cidade. 

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Num caminho oposto, e atacando diretamente pela primeira vez de maneira mais agressiva o principal gargalo atual de acesso à produção nacional, a Ancine divulgou no início do mês uma iniciativa para aumentar a freqüência de público nos filmes brasileiros. Serão investidos R$ 2 milhões para subsidiar ingressos promocionais (R$ 4,00 a inteira, R$ 2,00 a meia) para todos os filmes brasileiros em cartaz, durante duas semanas do mês de novembro. Duas semanas de novembro? Deixemos nessa pergunta nossa sincera interrogação sobre a eficácia, até mesmo a título de pesquisa, de fazer promoções por duas semanas. Carta de intenção ou há estratégia política?

Trata-se de uma iniciativa cujos resultados devem ser acompanhados de perto, por ser uma primeira experiência da Ancine em atuar na demanda, e não na oferta de filmes brasileiros, algo que pode quebrar determinadas barreiras e abrir os olhos de certos grupos para algumas evidências inegáveis. É torcer agora para não surgir alguém propondo utilizar esse recurso para produzir um longa – embora certamente não seria Barreto, que não faz filmes com “apenas” R$ 2 milhões, como sabemos.

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Na revista, mal será possível o respiro após o Festival do Rio e antes da Mostra de São Paulo. Nossa cobertura diária do Rio deu conta de mais de 100 filmes ao longo de 15 dias, neste momento rico do ano em que leitores e redatores respiram ares mais “excitados” pelo cinema do que em boa parte do resto do ano. Esperamos poder continuar com a companhia de vocês, leitores, nessa próxima empreitada, contribuindo de alguma maneira para ampliar a experiência no mergulho neste mar de filmes.

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