Alguma coisa acontece por
Cléber Eduardo e Eduardo Valente “Alguma
coisa aconteceu aqui essa noite”, afirmou Andrea Tonacci, após receber o prêmio
Jairo Ferreira de melhor filme brasileiro de 2006 para Serras da Desordem.
O prêmio, como “objeto/material”, é um diploma. Um símbolo. Um registro. Talvez
não seja para ostentar na estante da sala, mas para guardar bem guardado e com
cuidado, para não amassar ou manchar – em parte porque esse não é um prêmio, digamos
assim, para expor aos colegas como evidência de triunfo, mas, preferencialmente,
para ser encarado com recato, talvez porque seu real significado só saiba quem
o ganhou. Recato com emoção. Assim transcorreu a cerimônia de premiação: nua,
despida de artifícios sentimentais, de qualquer ambição de espetáculo, mas preenchida
em sua sobriedade por uma autêntica descarga de felicidade dos premiados. Emoções
sem arroubos nos agradecimentos, mas emoções autênticas em suas expressões. E
a principal delas, talvez a mais esperada, teve o renovado Tonacci como protagonista.
Ele se levantou ao ouvir seu nome, desfilou como um príncipe do século XIX pelo
corredor central do Cinesesc, e, no palco, olhando em algum ponto lá no fundo
da sala, o olhar traçando uma linha reta sobre quase 300 cabeças , disse: “Alguma
coisa aconteceu aqui essa noite”. O olhar tinha o brilho de quem enxerga seu entorno
com um lúcido orgulho de ser reconhecido pelo longo e rigoroso processo de criação,
em uma cerimônia em homenagem a Jairo Ferreira, em um templo do cinema de ambições
como o Cinesesc, em uma noite de primeira exibição pública de Cão sem Dono,
de Beto Brant e Renato Ciasca. Poucas horas mais tarde, sentado no Sujinho (o
templo carnívoro-etílico freqüentado semana sim, semana sim, por boa parte dos
votantes do Jairo Ferreira), Tonacci, cercado por mais de 50 pessoas ligadas às
cinco revistas organizadoras do prêmio, corrigiu o tempo verbal de sua frase no
Cinesesc: “Alguma coisa está acontecendo”. Não vamos negá-lo.
A mostra Revisão do Cinema Novo, acompanhada muito de perto por alguns de nós,
mas ignorada por quase todos os críticos sediados em São Paulo, permitiu vermos
a “História” em movimento. Primeiro porque viabilizou a revisão dos filmes em
conjunto, colocando-os em diálogos mais diretos uns com os outros, salientando
aproximações e diferenças, mudanças de rumos e permanências, expondo desde rachaduras
estéticas a opções potentes em 2006. Os filmes estavam lá para ser (re)vistos,
como propôs a curadoria. Só que, aparentemente, confirmando o diagnóstico feito
pelos curadores no catálogo, a maior parte de nossos “bem pensantes” não crêem
precisar mais rever nada ali – já viram e entenderam tudo que tinham para entender,
cristalizando um saber empedrado sobre nosso mais ressoante momento histórico
cinematográfico. Mas a importância da mostra não se resumiu
aos filmes. Tanto o provocativo texto no catálogo de seu editor (e da Contracampo),
Ruy Gardnier, quanto os debates e aulas realizados na mostra (que permitiram encontros
como o de Inácio Araújo e Paulo Cezar Saraceni ou de Cacá Diegues e Ismail Xavier
– pela primeira vez dividindo uma mesa de debates), recolocaram o Cinema Novo
em discussão – no sentido mesmo de fazer dele algo a se discutir e a colocar questões.
Pois aceitamos aqui a provocação da mostra, e nas próximas semanas pretendemos
seguir adiante o debate com algumas das figuras-chave da mostra e do pensamento
sobre o período – porque ainda há muito a ser dito sobre ele, como bem nos mostrava
a valiosa lista de filmes lançados no Brasil entre 1962 e 1969, existente no catálogo. Também
é preciso reconhecer a importância da Mostra de Rainer Werner Fassbinder (curadoria
do mesmo Ruy Gardnier), que permitiu a um grupo de cinéfilos mergulhar com fôlego
na obra do cineasta alemão, certamente dos mais hábeis artistas políticos no desafio
de fazer diagnósticos sem reduzir personagens a casos científicos. As coisas não
param de acontecer por ai. Em abril, organizaremos, estendendo o Jairo Ferreira,
um ciclo de debates: em mais uma parceria com o Cinesesc, essas discussões acontecerão
durante a programação do Festival dos Melhores Filmes do Ano, e se debruçarão
sobre questões estéticas e temáticas do cinema brasileiro e mundial. Enquanto
isso, tomamos fôlego para continuar 2007. Um ano em que, depois de muitos outros
em que coisas já vinham acontecendo, essas coisas, para mais gente, começam a
fazer sentido e a ganhar importância. Leia
também nossos editoriais anteriores.
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