Rachaduras de um verão acalorado
por Cléber Eduardo e Eduardo Valente
O verão de janeiro, extendido
pela primeira quinzena de fevereiro, foi especialmente quente no cinema. Primeiro
por conta de uma mostra no CCBB de São Paulo: Olhares Neo-Realistas. Tomando o
neo-realismo italiano como matriz, a curadoria de Gisela Cardoso extendeu-se sobre
experiências precedentes e sobre os posteriores efeitos estéticos e
temáticos do movimento, transitando por imagens de hemisférios e continentes
distintos. Assim, a programação contemplou de Toni (|França,1935), de Jean
Renoir, e Aniki Bobó (Portugal, 1942), de Manoel de Oliveira (dois filmes
de momentos anteriores ao neo-realismo e realizados fora da Itália) a Fábula,
Meu Lar em Copacabana (Brasil, 1965) , de Arne Suksdorff, e Largo Viaje
(Chile, 1967), de Patricio Kaulen, dois sul-americanos de um momento posterior.
Este, aliás, foi um segmento significativamente representado na programação, em
sua produção dos anos 50-60, com filmes dos argentinos Fernando Birri e Leonardo
Favio, dos brasileiros Roberto Santos, Alex Viany, Nelson Pereira dos Santos
e Paulo Cesar Saraceni, e dos cubanos Julio Garcia Espinosa e Tomás Gutierrez
Alea. Se mencionamos esses exemplos, em especial, e não
os títulos canônicos ou mais óbvios do neo-realismo (evidentemente, programados),
é para destacar o recorte mais amplo proposto pela curadoria, que procurou, na
programação dos filmes, dos debates e dos textos do catálogo, propor aproximações
históricas e salientar "adaptações culturais e estratégicas" – como
foram as experièncias na América do Sul acima citadas. E se destacamos esse recorte
associativo, mais coerente que questionável, é porque a proposta tem um conceito,
não apenas uma reunião de filmes. E propostas assim têm potencial não apenas de
nos dar acesso aos filmes para conhecê-los, revê-los ou estudá-los, mas também
para termos a oportunidade de ver conexões possíveis entre filmes colocados constantemente
em reuniões mais previsíveis – e estanques. Novos Olhares Neo-Realistas é uma
evidência de como se pode, com esforço e pensamento, conceber programações minimanente
fora do óbvio. Janeiro também foi o mês da Mostra de Tiradentes,
na qual os editores de Cinética atuaram como curadores de curtas, debates e longas. Sobre
ela, como já anotou Eduardo no Bloco de Notas, não iremos defender o trabalho
ou fazer auto-crítica. Mas vale a pena destacar as reações de defesa da mostra
pela falta de preconceitos com filmes miúras e as críticas feitas à curadoria
justamente por programar esses filmes de produção marginal e de propostas alienígenas
para os padrões do momento. Como diz o lugar comum, de pedra à vidraça. O efeito
dessa controvérsia, absolutamente previsível desde o início do processo da curadoria,
extendeu-se para um outro campo. Em seu artigo no Estado de São Paulo e em seu
blog, Luiz Zanin Oricchio, após concluir que a nova geração dá as cartas
em Tiradentes (onde ele participou de uma mesa de debate), explicitou um "racha"
na crítica. Pois de nossa parte consideramos não há um racha
e, sim, várias rachaduras – impossíveis de serem reduzidas a briguinha de
duas turmas. Essas divisões, absolutamente normais e históricas (em nada
originais), não passam por questões de geração, como parece supor Zanin.
Afinal, nem de longe a chamada "nova crítica" é homogênea em suas avaliações,
estratégias de análise e maneiras de encarar o cinema. O que a constitui, de fato, além
de em sua maior parte ter começado na Internet (à margem, portanto, da legitimação
da resenha publicada nos jornais e revistas), é a reflexão em grupo (e não
de grupo), com disposição para o debate e para intervenções mais diretas
no cinema (por meio de curadoria de mostras, cursos e até mesmo da realização
de filmes). Uma das evidências dessa forma de atuação é
a mostra Revisão do Cinema Novo, ainda em cartaz também no CCBB de São Paulo,
com curadoria de Daniel Caetano e edição de catálogo de Ruy Gardnier, dois dos
"veteranos" da Contracampo. Ao contrário da mostra Olhares Neo-Realistas,
que trabalhou na expansão associativa, nesta nova mostra a programação propôs
demarcação de limites, concentrando-se nos filmes vinculados à cena cinemanovista
nos anos 60. Segundo os organizadores, rever esses filmes em conjunto, na ordem
cronológica (sempre que possível), seria importante em si mesmo, pois o contato
com o conjunto nos permite ver com maior proximidade e “verificacionismo” os
diálogos entre as obras – assim como as distinções entre uma e outra, as
mudanças de acordo com o momento histórico, os hibridismos com os anos 50, as
maneiras de articular as operações do cinema moderno, os prosseguimentos
de alguns projetos autorais. O conceito está
exposto no catálogo, a partir de um texto provocador de Ruy Gardnier, questionando
os clichês e as ausências de relativizações em muitos textos sobre o Cinema Novo,
e apresentando uma lista de todos os filmes brasileiros lançados de 1962 a 1969
no Rio de Janeiro (pesquisa feita por Gardnier), além de trechos de
críticas sobre filmes do período. O que foi o Cinema Novo? Um conjunto de imagens
e sons em sua relação com sua sociedade em seu tempo histórico (os anos 60), ou
um discurso organizador da multiplicidade de enfoques e estilos? Essa pergunta
é dada como fora da pauta ou merece ser respondida pelo contato direto com os
filmes? Voltaremos a estas perguntas numa reflexão sobre a mostra em breve, mas
não custa se perguntar: haverá um racha ou rachaduras nas respostas
a elas? Leia também nossos
editoriais anteriores.
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