história(s) do cinema brasileiro
Todo ano eles fazem tudo sempre igual
por Leonardo Mecchi

Tão certo quanto a migração de certos pássaros no inverno, semana passada vimos o bom e velho espetáculo sazonal do cinema nacional: assim que sai a lista dos contemplados no edital da Petrobras, começa na imprensa cultural brasileira o festival de reclamações dos excluídos. Junta-se, ali, a fome com a vontade de comer: os órfãos do edital, ainda sob o choque do “ano perdido”, anseiam por expor a “injustiça” a que foram submetidos, enquanto a imprensa já aguarda o resultado com sua pauta pronta, louca para ver o circo pegar fogo.

Em 2007, especificamente, a imprensa parecia mais faminta do que os próprios cineastas. Pelo menos é essa a impressão ao lermos, por exemplo, a coluna de Joaquim Ferreira dos Santos (assinada por Cleo Guimarães nas férias do titular) no Segundo Caderno d’O Globo de 14 de julho. Sob o título “A turma dos descontentes – cineastas não contemplados choram suas pitangas”, o jornal carioca acompanhou a pré-estréia (em evento ligado ao Pan, ainda por cima) de Saneamento Básico, de Jorge Furtado, e tentou de todas as maneiras caçar declarações inflamadas dos presentes.

Se é verdade que vemos ao longo do texto declarações lamuriosas, inegavelmente elas soam ponderadas. “Deve haver alguma estratégia por trás disso que eu não consigo compreender. Mas não tem muito como contestar. É assim e pronto”, disse Roberto Farias. “Quem entra nessas coisas tem que saber perder”, afirmou do outro lado Cacá Diegues. Até mesmo Luiz Carlos Barreto saiu-se com um “escolheu, tá escolhido, não adianta reclamar”. Ou seja, nada que justificasse a priori o circo armado pela colunista social desde o título da matéria.

Já a Folha de São Paulo teve mais sorte com seus “personagens” no drama mambembe. Na edição de sexta-feira, 13 de julho, Mônica Bergamo já saia com as declarações bombásticas de Bruno Barreto, apresentado como a “primeira vítima fatal” do resultado da Petrobras. Segundo o texto, apesar de já ter captado R$ 3,2 milhões para sua versão ficcional de Ônibus 174, a recusa da Petrobras seria o fim do projeto, que deixaria de ser filmado. Barretinho declara suspeitar que “o assistencialismo esteja se sobrepondo ao mérito” nos critérios de seleção da empresa estatal.

Três dias depois, Mônica continua sua repercussão do resultado do edital, com a reação ainda mais inflamada e dramática de Ivan Cardoso, que afirma que abandonará não apenas o projeto que submeteu à Petrobras, mas a própria carreira de cineasta. Segundo a colunista, Ivan teria dito que faz “papel ridículo” ao se submeter a esses editais, e (num lance que, de tão improvável, parecia saído de roteiro de ficção-científica), teria se solidarizado com Bruno Barreto – sendo que, na mesma matéria, atacava o “cinema brasileiro de grande orçamento”, do qual Barreto é um dos expoentes.

A primeira observação interessante a se tirar dessas declarações é a convicção de alguns cineastas de que deveriam ter trânsito (e financiamento público) livre e garantido para produzir seus filmes, sem ter que se submetê-los a estes incômodos editais. É como se os cineastas tivessem lido todos os outros projetos concorrentes e estivessem absolutamente certos de que os seus são os melhores – ou pior: nem precisam ler, de tão convencidos da impossibilidade de que haja 27 projetos melhores do que os seus entre os de todos os outros cineastas brasileiros.

Com isso, além de superdimensionar sua importância, é claro que são incrivelmente deselegantes (para não dizer injustos) com todos os seus “colegas” – e para fazer isso, como de hábito, brada-se um “currículo”: Barreto (o filho) teria mérito prévio comprovado, seja pelo fato de (30 anos atrás) ele ter dirigido o filme de maior público oficialmente registrado na história do cinema brasileiro, seja porque, oras bolas, ele já filmou em Hollywood. Já Ivan Cardoso expõe seus sete prêmios internacionais e 54 nacionais (citados textualmente na coluna da Folha), que também deveriam ser suficientes para que ele não precisasse fazer o “papel ridículo” de se submeter a editais e concorrer com outros diretores menos premiados. Clama-se, assim, não por editais onde cada projeto seja avaliado em pé de igualdade com os outros, mas sim um sistema onde resultados prévios sejam garantias de financiamentos futuros.

No entanto, não custa lembrar que, indo menos longe no tempo ou na geografia, os últimos filmes dos dois (projetos marcadamente “comerciais”) não fizeram jus às expectativas: Caixa Dois foi visto por muito menos gente do que havia sido planejado (embora, para que não se cometa injustiças, precisemos lembrar que isso aconteceu com a quase totalidade dos filmes nacionais neste 2007), enquanto Um Lobisomem na Amazônia sequer foi lançado nos cinemas, com sucessivos adiamentos na previsão de sua estréia, tendo já completado quase dois anos de sua primeira exibição (isso para ficarmos no projeto comercial de Ivan Cardoso – já que A Marca do Terrir também não foi lançado, mas é projeto de cunho assumidamente menor em termos de público).

Há um caminho já bastante conhecido para esse sistema de méritos comerciais premiados – mas que, claro, nenhum cineasta brasileiro está disposto a trilhar dada sua improbabilidade no mercado interno tomado e subdimensionado: fazer com que a bilheteria de um filme financie o próximo, como ocorre em qualquer mercado que preze tal nome. Assim, mesmo cineastas que adoram se auto-proclamar “populares” parecem satisfeitos com o papel de, ano após ano, continuar a se submeter ao “papel ridículo” de exigir recursos públicos para seus “filmes comerciais”. Insatisfeitos eles ficam, apenas, com o fato de eventualmente não serem selecionados – e por isso precisam abandonar (ou ao menos ameaçar fazê-lo, para fins de espetáculo dramático) seus projetos e carreiras.

O que realmente está por trás desse eterno chororô (além, é claro, dos velados “recados” que os mais astutos dão via mídia, visando – e geralmente conseguindo – garantir resultados em seleções imediatamente seguintes) é uma falha que ocorre não apenas na Petrobras, mas em todos os editais de fomento à cultura, sejam eles públicos ou privados: a ausência de justificativas e critérios da seleção apresentada. Como questionou Barretão à reportagem d’O Globo, “o problema é que é tudo muito subjetivo. Quais são os critérios?”

No caso específico da Petrobras, há uma preocupação com a idoneidade da marca e, conseqüentemente, apresenta-se junto com o resultado do edital uma série de análises estatísticas e explicações sobre os trâmites burocráticos do processo de seleção. A estatal,

entretanto, não gasta uma linha sequer justificando os critérios que nortearam os jurados durante o processo de avaliação e seleção dos projetos (apenas informam no edital que os projetos serão avaliados em sua “qualidade cinematográfica do roteiro, viabilidade técnica e financeira e cronograma e orçamento”).

Trata-se de algo que poderia ser facilmente resolvido caso se exigisse dos jurados um texto em que analisassem o panorama de todos os projetos inscritos naquele ano e que explanassem as razões pelas quais eles confiaram os prêmios àqueles projetos específicos. É óbvio que tal providência não iria nunca satisfazer a todos, e poderia sempre haver o chororô da avaliação necessariamente subjetiva de projetos, no final das contas, artísticos (portanto, não mensuráveis apenas por critérios objetivos). Mas a total falta de transparência nesse quesito sempre envolve os resultados em polêmicas junto à classe cinematográfica – embora saibamos que nem quando há critérios claros se pode acalmar as vozes mais “desesperadas”.

Um exemplo: já com suas filmagens terminadas, Era Uma Vez..., novo filme de Breno Silveira, diretor de Dois Filhos de Francisco (ou seja, alguém que realmente pode falar de sucesso de público recente) não foi selecionado – o que realmente poderia soar bastante estranho a quem equacionar sucesso de público de um filme com financiamento automático do próximo (como insinuou fazer O Globo numa matéria que acompanhava o anúncio dos premiados). Só que é sabido que a Petrobras premia os projetos no seu nascedouro, antes até de começarem sua pré-produção, servindo como alavanca de realização de projetos julgados no roteiro – tanto assim que os desembolsos de seus recursos prevêem uma parte na pré-produção, outra na filmagem e outra após a finalização. Não se trata, portanto, de um edital de finalização, como são alguns outros voltados para obras com dificuldades de serem terminadas após completar sua filmagem, estando este critério descrito claramente no edital: “Não serão aceitos para esta Área de Seleção Pública projetos de filmes que já se encontrem em fase de finalização”. Ainda assim, como sempre, mídia e cineasta se prestam rapidamente ao papel da polemização, da grita por critérios – mesmo quando eles existem.

Isso não é motivo, porém, para a Petrobras se eximir de todo de mínimas justificativas, e assim quem sabe explicar fatos realmente estranhos (que, curiosamente, estes sim não são questionados) desta seleção, como a premiação de cineastas que ainda não terminaram, ou sequer filmaram, projetos contemplados em editais de anos anteriores. É uma brecha (permitida pelo regulamento do edital, diga-se) no mínimo estranha diante da notória escassez de recursos para a totalidade dos cineastas brasileiros. Mas, como não afeta diretamente àqueles que tem livre acesso à mídia como palanque de reclamações e ameaças (e, consequentemente, não se presta a auto-flagelos públicos e chantagens institucionais pessoais), parece passar desapercebido.

editoria@revistacinetica.com.br


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