E Aí... Comeu?, de Felipe Joffily (Brasil, 2012)

por Raul Arthuso

Amor com sexo, por favor!

“E é muito provável que um bom par de nádegas
tenha maior poder de convicção que um desenlace casamenteiro”.
Jean-Claude Bernardet

No início de E aí... Comeu?, vemos os protagonistas Fernando (Bruno Mazzeo), Osório (Marcos Palmeira) e Afonsinho (Emilio Orciollo Netto) jogando conversa fora numa mesa de bar: falam da bunda da gostosa que passa ao lado, das “frígidas” da outra mesa que reclamam de seu papo machista, das manias femininas que encontram em casa. Logo no momento seguinte, o panorama é outro, trava-se contato com a esposa e as filhas de um, a ex-mulher que está abandonando outro, a solidão do terceiro.

E Aí... Comeu? é construído a partir dessas dicotomias: bar/casa, macho/homem, gostosa/frígida, esposa/amante, sexo/amor. Porém, todos os jogos de oposição do filme podem ser traduzidos a um ponto de fuga: aparência/essência. No bar, os protagonistas são filósofos, expressam de maneira articulada ideias rocambolescas, têm opinião de tudo e jogo de cintura para sair de momentos incômodos, enquanto na privacidade do lar são abatidos por uma apatia de Homer em frente à TV, incapazes de se articularem na própria vida, tomados pela imobilidade da situação imposta por suas mulheres. Porém, não se trata de apenas relacionar espaços e conceitos, tendo as personagens como cobaias. Existe uma crença – talvez inocente – de que a oposição desses espaços e suas situações possa revelar uma verdade, extraindo-se uma essência de onde tudo é aparente.

Se por um lado o cinema é lugar privilegiado para esse tipo de jogo, é preciso um pouco mais do que despejar os ingredientes e esperar a sopa primordial surgir do nada. Assim, em E Aí... Comeu?, os elementos permanecem estanques, evitando o choque e, contraditoriamente à sua crença, entregando-se ao rótulo: a ex-mulher, a lolita, a lésbica, a esposa megera, a frígida feminista, o casado, o solteiro, o divorciado. Alana (Juliana Schalch), namorada de Afonsinho, torna-se a mais emblemática das personagens. Prostituta de luxo, ela não pode passar as noites com ele, nem manter um relacionamento comum, na medida em que precisa estar disponível para sua vida profissional. Ela está sempre muito bem caracterizada em dois momentos distintos: a chave “namorada” e a “prostituta de luxo”. Não há zonas de cinza, só contraste puro entre A ou B, um ou outro.

Isso fica mais claro observando como a divisão entre os espaços do bar e do lar engatilha a separação entre momentos “cômicos” e “dramáticos”. O bar, os amigos, os encontros, o pueril são sempre cômicos, enquanto a vida, as relações conjugais, o essencial são especialmente “dramáticos”. E, se no bar ainda há alguns bons achados do filme – como o garçom Seu Jorge, conselheiro dos protagonistas, cujo nome advém de sua semelhança com o cantor Seu Jorge, que interpreta o personagem –, a vida, ou melhor, as experiências particulares das personagens em suas casas e no trabalho são tratadas com alguma solenidade, como se a crença na possibilidade de descobrir o essencial no aparente não fosse possível em “apenas” uma comédia. A “profundidade” parece entendida, mais do que ser um olhar para/lidar com o mundo, como um dado estético, uma forma (problema que também acomete um filme tão diferente deste como O Palhaço, de Selton Mello). É a negação do “cômico” pelo “sério”, do “prosaico” pelo “profundo”, algo próprio dos “profissionais”, que sempre sabem a hora de trocar um pelo outro, dominando uma espécie de autocontrole absolutamente obscura aos amadores. É, em resumo, saber diferenciar uma farra de uma festa.

Então,  não surpreende que a dicotomia primeira e mais presente do filme – sexo/amor – siga a mesma toada, tão insípida. Pois, se seu título é uma frase lidando abertamente com o sexo, o filme o tangencia, pois se pretende, como alude a publicidade, “uma comédia sobre o amor”, dividindo instâncias para falar de uma e de outra, mas nunca uma com a outra, tratando o sexo com assepsia – algo evidente em dois momentos: o manual do sexo oral, onde a felação é acessório da performance do ator com o texto; e quando Aninha Tarja Preta (Katiuscia Canoro) vai ao apartamento de Afonsinho, na trepada mais broxante do cinema em muito tempo – ou com distanciamento e interdição, substituídas por requinte plástico da imagem, momento em que é, de fato, “amor”.

O filme opera a divisão entre sexo e amor como Alana faz em sua vida, sendo o primeiro associado ao profissional, ao prático, ao acessório, ao artificial enquanto o segundo é o introspectivo, sublime, existencial, essencial. E por isso mesmo, o amor é um segredo a ser vivenciado – Afonsinho não consegue escrever um romance sobre o amor, pois nunca o viveu, mas consegue desvendar o mecanismo para levar mulheres casadas para a cama com muita facilidade – enquanto o sexo é teorizável, planificável, pode ser traduzido pelo filosofês precário do falatório da mesa do bar e vulgarizado pela mise en scène asséptica de Telecurso 2000 ou plasticizada da publicidade.

Dividir essas instâncias é uma forma de tentar domar o indomável. Ou melhor, de não ter de lidar realmente com ambas, fazendo delas significantes cujo sentido é esvaziado: tanto amor quanto sexo viram clichês absolutos de “amor é isso, sexo é aquilo”, que Rita Lee catalogou para o progresso da humanidade em sua canção, ou que o filme elabora em sua alternância de chave on/off , marca do desenvolvimento formal da narrativa. E aí... Comeu? é a consagração da moral do “quem vê cara, não vê coração”, como se cara e coração não constituíssem partes do mesmo ser. E, depois de tão pouco peito, abdômen tanquinho, pelos pubianos e bundas, só poderia dar em casamento!

Julho de 2011

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