Dzi Croquettes,
de Tatiana Issa e Raphael Alvarez (Brasil, 2009)
por Andrea Ormond

Pare, repare

Os Dzi Croquettes, entidade poderosíssima dos anos 70, exercem um campo magnético sobre todo aquele que vasculha a identidade brasileira. Os incautos que, tolinhos, andam na ponta dos pés, com medo de quebrarem os cristais da sala, quando se deparam com esse bólido imenso, não resistem. Tentam tocá-lo e se vêem alcançados por ele. Afinal, ninguém consegue sustentar a tese de que a influência do grupo de treze moços tenha se restringido a um formato cênico; a um punhado de minutos em cima do palco, quilos de strass, plumas, cenografia vigorosa, dança, humor refinado. Trata-se, sobretudo, da história de uma pulsão, de um mistério profundo pela ascese artística que melhora, depura e transforma o humano. Tocar no épico de vida e morte dos Dzi significa tocar na guerra intramuros e extramuros, no monte de energia que mal conseguiam racionalizar mas que teceu a ponte profunda entre os integrantes e o público – que, mesmerizado, olhava-os de perto (na platéia) ou de longe (milanos depois ou à época, dentro do armário).

Dzi Croquettes, o filme, tateia a superfície do turbilhão de conceitos possíveis, o zilhão de teses já ditas ou por se dizer. Mas apesar da previsibilidade é redimido pelo amor, substrato que fazia o grupo girar. Não apenas de Tatiana, filha de Américo Issa – cenógrafo do grupo – e que aproveita o gancho em termos de linguagem cinematográfica, colocando-se como tópico das entrevistas e narradora ocasional, misturada às imagens de sua infância. Amor também nutrido por aqueles que, com o distanciamento do tempo, tentam elaborar o que viram do grupo: As Frenéticas, as atrizes Marília Pêra, Betty Faria, Norma Bengell, as divas Elke Maravilha e Liza Minelli, Ney Matogrosso, Aderbal Freire Filho, Nelson Motta, César Camargo Mariano, tantos. Em alguns destes, o fogo explode, se transforma em suor e lágrimas, agrega entusiasmo à fragilidade narrativa do documentário.

Dos integrantes originais (Wagner Ribeiro, Lennie Dale, Cláudio Gaya, Cláudio Tovar, Paulette, Ciro Barcelos, Bayard Tonelli, Roberto Rodrigues, Carlinhos Machado, Bene, Eloy, Reginaldo e Rogerio de Poly), quatro sobreviveram (Tovar, Barcelos, Tonelly e Rogério). Depoimentos destes últimos são conjugados com imagens de dois dínamos: Lennie Dale e Wagner Ribeiro, mentores do espírito dzi. Em Lennie, estava a fúria. Egresso da Broadway – importado por Carlos Machado – cantou bossa nova no timbre meio Johnny Hartman, dilapidou o Beco das Garrafas, ensinou a Elis Regina os gestos largos do “Arrastão” que mostrou no Festival Excelsior de 1965. Em Wagner, a abordagem filosófica que fingia não sê-la – apesar de sê-la de fato. Lirismo articulado, pensado, que colocou em palavras o mote de que “somos de carne, como croquetes”. Apesar de supostamente remeter-se ao sexo físico, vibravam de sexo sensorial. Os pêlos bufando, gritando entre as maquiagens e os corpos masculinos: “Não somos homens, não somos mulheres. Somos gente, como vocês”, diria Lennie. Não à toa, momentos como o duo romântico com galalaus fortes – Lennie e Ciro, no bolero “Dois pra cá, dois pra lá” – atingem uma compreensão absurda sobre o relacionamento de desespero e melancolia, retratado na letra de Aldir Blanc.

Bem assim, o delírio setentista, em que o corpo servia à idéia – e não ao atual narcisismo chulé das academias –, explica a delícia de um grupo que tratou dos costumes bebendo de uma época de maior inteligência e menor diluição existencial. Período que desceu a um luto tremendo, ao caminhar para a histeria neoconservadora que suprimiu o desejo e determinou a imperiosidade de um gozo que nunca vem. A ditadura tecnocrata dos 1964-1985 – totem que vira e mexe toma conta do documentário – não é, portanto, o pano de fundo mais acertado. É tão somente o mais óbvio. Restringir-se a ele é imprimir um tom didático que não se sustenta. Isto porque, apesar das fronteiras fechadas, do regime de exceção, já circulava no Brasil a inquietação de século XX, fosse ela publicada pela Editora Civilização Brasileira, fosse ela projetada nas salas de cinema, de aula, de teatro, nos chopes ideologicamente marcados pelo ôba-ôba marcusiano ou pelo combate planejado. Les Dzi deixam claro este geist fundamental.

É de se notar que a geração que em 2009 colocou o grupo nas telas passou por outro processo de formação, principalmente midiático. Tatiana Issa atuou em novelas e petardos como O Guarani (1996). Raphael Alvarez encarnou Cecéu, galã infantil de A Gata Comeu (1985), novela de Ivani Ribeiro para qual todos os pimpolhos corriam depois das aulas no colégio. Ambos estréiam agora na direção de longa-metragem; ambos ouvem o ruído dos tamancos de plataforma e se encaminham a eles, um tanto naïfs, mas protegidos pela solidez das croquettes, típicos exemplos de baby-boomers. O fato é que se deve aproveitar o lançamento do documentário para reavivar-se a franquia dziesca. Torço febrilmente por livro cuidadoso de fotos, como registro de bordo do espetáculo visual. Biografia também é, obviamente, de bom grado. Mas, atenção: tudo concebido com o devido apuro que lhes é pertinente. De outro modo não é possível, meu bem.

Julho de 2010

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