Onde Andará Dulce Veiga?,
de Guilherme de Almeida Prado (Brasil, 2007)
por Eduardo Valente

Outra coisa

Onde Andará Dulce Veiga? tem uma forte sensação de balanço de carreira e trajetória de Guilherme Almeida Prado. Não por acaso a primeira coisa que surge na tela é a localização espaço-temporal “São Paulo, 198...”, percebemos que Guilherme de Almeida Prado tem bastante consciência de onde se encontra radicalmente fincado o seu cinema dentro do imaginário histórico da cinematografia nacional. Falamos do diretor que fez, afinal, A Dama do Cine Shangai (1987), possivelmente o grande filme maneirista realizado no Brasil, fruto da geração que ficou conhecida como a do “neón-realismo” - justamente uma geração advinda de São Paulo, nos anos 1980. Pois, com Onde Andará Dulce Veiga?, Almeida Prado realiza um curioso filme que, ao mesmo tempo que mergulha com profundidade nas obsessões mais caras ao seu realizador, parece sempre manter uma curiosa distância auto-consciente do tanto que possui de obra altamente pessoal e do que significa esta autoralidade.

 De fato, a auto-referência é uma constante no filme: em diferentes momentos da narrativa, personagens afirmarão que “ninguém é de verdade” ou que “tudo é pós-moderno, pós-tudo”, lances de roteiro que parecem apenas reforçar a auto-consciência de Almeida Prado sobre sua obra. Mais significativamente ainda, surgem na tela as divas-protagonistas de seus cinco longas anteriores: Matilde Mastrangi, de As Taras de Todos Nós; Imara Reis, de Flor do Desejo; Maitê Proença, do  A Dama do Cine Shangai; Christiane Torloni, de Perfume de Gardênia; e Julia Lemmertz, de A Hora Mágica. Elas são as “estrelas” entre as quais circulam uma série de atores absolutamente fascinantes no seu domínio da artificialidade que cabe aos coadjuvantes do cinema de Almeirda Prado: Nuno Leal Maia, Cacá Rosset e Oscar Magrini roubam a cena cada vez que entram em ação (não por acaso, sempre fazendo contraponto ao protagonista masculino, e não tirando atenção das mulheres).

Dentro dos importantes papéis que cada uma das “divas almeidapradianas” interpreta no filme (incluindo a curiosa participação de Lemmertz, que remete diretamente ao filme anterior do diretor sem fazer exatamente parte da narrativa deste Dulce Veiga), é especialmente simbólica a presença de Maitê como Dulce Veiga, pois apesar do nome do título, trata-se na verdade da mãe da personagem feminina principal do filme, interpretada por uma Carolina Dieckmann que assume assim uma passada de bastão de “mãe para filha” dentro da obra de Almeida Prado.

Neste sentido seria simples ler, então, Dulce Veiga como uma declaração de princípios do que é o cinema segundo o diretor – há ainda uma ferina ironia no meio da história, quando o diretor de cinema interpretado por Oscar Magrini diz que foi substituído na direção de seu projeto interrompido (de título Metaphora) por um diretor oriundo “do Cinema Novo”. No entanto, isso seria ignorar o trajeto que cumprem os protagonistas “contemporâneos” do filme: a cantora interpretada por Dieckmann e Caio de Almeida (nome que une o autor do livro, amigo e inspirador Caio Fernando Abreu, com o nome de Guilherme), o jornalista-detetive interpretado por um Eriberto Leão absolutamente funcional (como antes já o foram Raul Gazolla, José Mayer ou Antonio Fagundes): como um protagonista clássico da Hollywood noir que o diretor tanto gosta de evocar, ele tem carisma o suficiente para nos interessarmos por ele sem nunca se tornar o foco dramático real do filme – papel este reservado às mulheres, sempre.

Ambos são figuras que erram pelo filme, angustiados, tentando se livrar de um passado que os traumatiza e conecta, de entrar em paz com suas próprias lembranças. Em seu trajeto, circulam em meio ao glamour de um mundo artístico marcado ou pela futilidade (Christiane Torloni) ou absolutamente fincado no passado da imagem cinematográfica e seus ícones, variando entre os que sumiram, como a Dulce Veiga que procurava “outra coisa”, e os que encontram-se ou completamente destroçados (caso de Raudério), ou decadentes (caso do pianista Pepito) ou recalcados com a trajetória que tomaram (caso de Alberto, o marido gay). Ao final, Caio de Almeida só vai encontrar o que tanto procura num Brasil “real”, despido dos artifícios que marcam a parte paulista (e a curta passagem carioca) do filme, cheios de perucas, fumaças, tatuagens e figurinos que tentem “mudar”, “rotular” seus personagens. 

Anúncio de uma virada de percepção na obra de Guilherme de Almeida Prado, então, com a valorização do realismo sobre o império do artifício, com a lição da necessidade de se buscar uma “outra coisa” por baixo do luxo aparente das luzes do cinema? Não tão rápido: afinal não é por acaso que o Brasil real escolhido aqui não é o do sertão nordestino (para sempre ligado ao modernismo literário ou mais especificamente ao Cinema Novo), mas o espaço “virgem” da Floresta Amazônica: terreno imagético deslumbrantemente cinematográfico mesmo no registro naturalista. E, afinal, não só o encontro romântico final se dará como um número musical, mas debaixo de uma chuva tão realista (em se tratando da Amazônia) quanto falsa. A “morte” de um cinema puramente referencial (e que paradoxo!) nos leva então a uma realidade... absolutamente onírica, quase artificial.

É assim que Dulce Veiga se afirma como um filme bastante complexo: certamente tem muito de uma prestação de contas de Almeida Prado com seu passado no cinema, uma problematização deste (mas não uma negação), possivelmente a partir da sua decepção com a pequena atenção dada a Hora Mágica (e o próprio périplo para realizar e lançar Dulce Veiga), mas ao mesmo tempo se revela uma afirmação daquilo que mais lhe interessa: a busca pela beleza; a poesia a ser encontrada por uma linguagem cinematográfica extremamente detalhista, que privilegie o brilho de pequenos grandes momentos (não por acaso o filme é bem mais forte nas partes do que no todo, como é comum em cineastas maneiristas quando precisam construir narrativas, e cenas que “fazem a história andar”). O que vemos na tela é um cineasta amargo com o seu entorno, mas ao mesmo tempo absolutamente crente ainda na imagem cinematográfica.

Setembro de 2007

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