in loco
Um estrangeiro em Ouro Preto
por Marcus Mello
Responsável pela conferência de abertura do 10º
Encontro da SOCINE – Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema
e Audiovisual, realizado entre os dias 18 e 21 de outubro em Ouro
Preto, o teórico francês Philippe Dubois proporcionou uma inspiradora
reflexão sobre os rumos do cinema contemporâneo a partir de sua
migração para os museus e outros espaços expositivos que não a
tradicional sala de exibição. Ao longo de duas horas e meia de
fala (que não chegou a concluir, sendo interrompido pela organização
em vista do adiantado da hora), Dubois discorreu sobre uma tendência
que, embora já anunciada por artistas como Andy Warhol nos idos
de 1960, em anos recentes vem aumentando de forma significativa,
invadindo galerias, museus e bienais de arte ao redor do mundo.
Professor da Universidade de Paris III, o prestigiado
departamento de Cinema e Audiovisual da Sorbonne Nouvelle, Dubois
coordena um grupo de 30 pesquisadores que vêm mapeando as principais
manifestações em torno de um fenômeno que chama de “cinema de
exposição”, em oposição ao tradicional “cinema de exibição”. Sua
conferência, intitulada Cinema, Arte Contemporânea,
teve início com a descrição de duas recentes exposições acontecidas
no Centro Pompidou, em Paris: O Movimento das Imagens (reunindo
obras do acervo do próprio Pompidou que dialogam com o cinema)
e a polêmica e “frustrada” Collage(s) de France, exposição
que seria realizada por Jean-Luc Godard, e que acabou se tornando
Viagem(s) à Utopia – Em Busca de um Teorema Perdido,
instalação reunindo maquetes, croquis e outros objetos
que anunciavam o que teria sido o projeto original idealizado
por Godard/Dominique Païni - o curador que acabou sendo demitido
pelo Pompidou. A história da realização desta
exposição, assim como um passeio por ela, foram
descritos na Cinética, por Leonardo
Sette e Cezar Migliorin. Ainda
que em seu discurso tenha deixado claro que prefere Jean-Luc Godard
a JLG (e quem não prefere?), Dubois reconheceu a genialidade deste
em transformar o fracasso de sua tão aguardada exposição, para
o qual ele próprio teria contribuído, em uma brilhante “exposição
sobre o fracasso de uma exposição”, não poupando ironias ora a
Godard, ora ao Pompidou.
No entanto, a parte mais interessante da conferência
veio no momento em que Dubois passou a apresentar uma série de
artistas contemporâneos que usam o cinema como fonte de investigação.
Sem recorrer em nenhum momento à leitura e revelando um invejável
domínio oratório, a conferência de Dubois acabou sendo também
uma afirmação do poder imagético da palavra. Amparado apenas pela
projeção em power point de pequenos trechos de um ou outro
dos filmes-exemplos, sua descrição das obras analisadas era tão
vívida e cheia de detalhes que deixava a platéia com a sensação
de estar assistindo a um filme sem imagens. Ver Dubois em ação,
produzindo “ao vivo” teoria que em breve deverá estar publicada
em livros que serão citados pelos mesmos acadêmicos que não tiveram
paciência para escutá-lo (o auditório, lotado no início da conferência,
terminou com meia dúzia de gatos pingados na platéia), fez valer
a viagem a Ouro Preto.
O
primeiro artista discutido foi o escocês Douglas Gordon (1966),
com suas projeções estendidas de clássicos do cinema. Em Twenty
Four Hour Psycho (1993), em uma tela suspensa na sala de um
museu, Gordon projetou Psicose (1960), de Alfred Hitchcock,
em slow motion, dilatando a duração do filme em 24 horas.
Como seria de se esperar, Dubois relacionou esta obra de Gordon
a Gus Van Sant e sua refilmagem plano a plano de Psicose
(1998), ousada experimentação cometida no coração da indústria
cinematográfica, obviamente pouco compreendida à época, embora
já anunciasse a gestação de futuras obras-primas como Gerry
(2002) e Elefante (2003). Ainda mais radical seria o trabalho
de Gordon sobre Rastros de Ódio (The Searchers,
1956), de John Ford. Em Lyon, o filme foi exibido a uma velocidade
tão lenta que sua projeção integral durou nada menos que cinco
anos, de 1995 a 2000. Por que cinco anos? Porque este é exatamente
o percurso temporal da narrativa, do rapto da menina branca pelos
índios até o seu resgate, já adolescente, pelo tio interpretado
por John Wayne. Ou seja, a projeção do filme corresponde exatamente
ao tempo dos acontecimentos vivenciados pelos personagens ao longo
da trama narrada por Ford.
Já
em Déjà-vu (2000), o filme noir D.O.A. – Com as Horas
Contadas (1950), de Rudolph Maté, foi projetado por Douglas
em três telas, uma ao lado da outra. Na primeira tela, o filme
é exibido a 23 quadros por segundo, na segunda tela a 24 quadros
por segundo e na terceira tela a 26 quadros por segundo. No princípio,
esta diferença de velocidade é imperceptível ao olho humano, mas
depois de algum tempo estes segundos começam a se transformar
em minutos e o espectador passa a ver, ao mesmo tempo, o presente,
o passado e o futuro das imagens de D.O.A., experiência
potencializada pelo fato de ele estar diante de um filme de suspense
que termina de modo trágico. Além de realçar a plasticidade dos
planos destes filmes, Douglas Gordon oferece ao espectador a possibilidade
de experimentar outra percepção do tempo, “materializando”, em
certo sentido, este território fluido que se esconde entre as
suas imagens.
Outro artista, o francês
Pierre Bismuth (1963), colaborador
de Michel Gondry (é autor do argumento original de Brilho Eterno
de uma Mente Sem Lembranças), brinca com a percepção
do espectador, separando som e imagem ao projetar filmes conhecidos
como O Passageiro – Profissão: Repórter (The
Passenger, 1975), de Michelangelo Antonioni, e Um
Convidado Bem Trapalhão (The
Party, 1968), de Blake Edwards. Durante a projeção
do primeiro, Bismuth separa o som da imagem e introduz o texto.
Num fone, o espectador escuta a banda sonora original. Na tela
ao lado, corre um texto com as informações
sonoras digitadas por uma datilógrafa que apenas escuta os sons
do filme, sem poder ver suas imagens. Já na projeção de
Um Convidado Bem Trapalhão, uma tela exibe as imagens sem
som. Enquanto isso, alguém que não está vendo o filme vai descrevendo
para o espectador a sua banda sonora. Assim, a cena de uma porta
que bate pode ser interpretada como a queda de um personagem,
ou um estouro de champagne será confundindo com um tiro. Nestas
provocativas instalações, Bismuth revela o quanto nossa percepção
do mundo é limitada. Ao mostrar nossa incapacidade de ver tudo,
de escutar tudo, de conhecer tudo, o artista lança uma reflexão
profunda sobre a impossibilidade de apreensão do real, tema dos
mais pertinentes à nossa condição contemporânea.
Em outro campo estão aqueles trabalhos que se
dedicam à remontagem de fragmentos fílmicos, designados como found
footage, a quem Dubois filia à tradição dos ready-mades
de Marcel Duchamp. Algo que no âmbito industrial Carl Reiner fez
em Cliente Morto Não Paga (Dead Men Don’t Wear Plaid,
1982), levado ao extremo por um grupo de artistas da chamada “escola
austríaca”, da qual fazem parte nomes como Martin Arnold (1959)
e Peter Tscherkassky (1958), ou o alemão Matthias Müller (1961).
Martin Arnold, em Pièce Touchée (1989),
apropria-se de 18 segundos de um obscuro filme americano dos anos
50 (The Human Jungle, de Joseph Newman), e os transforma
em um curta de 16 minutos, através de um processo de duplicação
e recombinação de fotogramas. Na cena em questão, um homem abre
uma porta e entra em casa, enquanto uma mulher, sentada numa poltrona
da sala, volta-se em sua direção. A frenética reorganização e
reiteração daqueles poucos planos levada a cabo por Arnold confere
outro(s) sentido(s) à cena, desvelando, segundo Dubois, “o inconsciente
de imagens anódinas”.
Matthias Müller, em Home Stories (1990),
reedita trechos de melodramas dos anos 50, notadamente os filmes
de Douglas Sirk, reunindo, por exemplo, várias cenas em que a
heroína repete o gesto de abrir uma porta. Curiosamente, outro
filme de Müller, Vacancy (1999), foi tema de uma das comunicações
da SOCINE, apresentada por José Gatti, professor da Universidade
de São Carlos. Neste, velhas imagens de arquivo mostrando Brasília
à época de sua inauguração dão origem a uma espécie de filme B
de ficção científica, ao qual Müller confere o caráter de uma
distopia sobre o fracasso do projeto modernista.
Entre
os trabalhos mais instigantes descritos por Dubois está o de Peter
Tscherkassky. Em Outer Space (1999), Tscherkassky elege
como matéria-prima um filme de horror americano dos anos 80, O
Enigma do Mal (The Entity, 1982), de Sidney J. Furie.
No filme, a personagem de Barbara Hershey é atormentada por um
espírito invisível, que assombra sua casa, fazendo voar móveis
e objetos, além de violentá-la sistematicamente. Num processo
semelhante ao realizado por Martin Arnold, as imagens do filme
(agora em p&b) são reorganizadas, recortadas e sobrepostas.
Ao serem projetadas, o efeito produzido dá a impressão de que
o espírito transferiu-se para a própria película, manifestando-se
na materialidade do suporte fílmico. O efeito provocado por este
“filme assombrado”, conforme o trecho exibido por Dubois mostrou,
é extraordinário.
Ao debruçar-se sobre a obra destes artistas, Philippe
Dubois identifica que, oferecendo ao espectador uma nova versão
de filmes esquecidos ou consagrados, eles fazem avançar as fronteiras
do cinema como o conhecemos, possibilitando uma experiência de
ressignificação de imagens que se insurge contra o atual processo
de banalização e saturação de informações que caracteriza o mundo
contemporâneo.
P.S. Ao leitor que tiver sua curiosidade despertada
por este breve relato e quiser conhecer um pouco mais do pensamento
de Philippe Dubois, uma excelente introdução é o livro Cinema,
Vídeo, Godard, lançado pela editora Cosac Naify em 2004.
editoria@revistacinetica.com.br
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