edição especial curtas brasileiros 2009
O peso do mundo
por João Toledo
colaboração especial para a Cinética


Crédito, de Lucas Camargo de Barros (São Paulo, 2009)
Duas Fitas, de Felipe Miguel e Lucas Camargo de Barros (São Paulo, 2009)

Assistindo a estes dois curtas, podemos constatar que Lucas Camargo de Barros (assim como seu co-diretor em Duas Fitas, roteirista em Crédito e fotógrafo nos dois filmes, Felipe Miguel) é um diretor incomum dentro do atual cenário de curtas-metragistas brasileiros. Em parte pelo extremo rigor e contenção cênica, mas fundamentalmente pelas implicações dessas escolhas formais. Rigor, afinal, tem-se visto a torto e a direito como herança fácil de um certo cinema contemporâneo, especialmente oriental, laureado em festivais de renome. Mas quase sempre esse rigor permanece como uma escolha formalista, se ocupando de uma sedução leviana, expondo as marcas de sua filiação estética, se propondo a um processo de criação que, ainda que bastante complexo, tem intenções cinematográficas claras.

O cinema dos diretores traça um caminho bastante distinto, para não dizer oposto. Nada nunca se torna exatamente claro. Há uma incompletude que é origem e destino em seus filmes, e eles parecem bastante à vontade habitando esse espaço indeterminado. Tudo ali é mistério, tudo é indecifrável, e ele percorre esse universo sem nos guiar por entre códigos. Não se trata da ausência de códigos, mas de uma imanente indecifrabilidade destes que compõem a trajetória exposta. A idéia de uma narrativa, que traça um percurso, não implica, neste cinema, em qualquer pressuposto de conseqüência, em qualquer paradigma de conclusão e desfecho. Aqui, o cinema – com suas regras usuais, as mais impregnadas nas estruturas estético-narrativas – não serve para mediar nossa experiência com o filme; seus curtas demandam um tatear muito delicado, sem que se pense na soma para chegar a qualquer resultado.

Há uma cinefilia óbvia na imagem; não se trata de um cinema intuitivo, que parte do zero, de um repertório restrito. É um cinema que parece bastante familiar com os meandros da linguagem, que conhece o cinema e parte dele para reconstruir a forma de se relacionar com o mundo, com o espectador, com o cinema brasileiro. A mise-en-scène que conduz tanto o curta Crédito quanto Duas Fitas cria uma ambigüidade muito potente; ela traduz um certo cinismo, um humor bastante particular que reside no absurdo e no ridículo de certas atitudes (como a insistência do personagem de Crédito para que seu presente seja entregue; o discurso de auto-ajuda sobre “sucesso” que ouvimos na televisão no mesmo curta; o empregado da escola que anuncia os nomes dos alunos pelo microfone em Duas Fitas; o garoto que vai pegar de volta as fitas do coleguinha morto e diz no interfone que vai “na casa do Alex, que morreu”), mas ao mesmo tempo também um mal-estar indissolúvel, uma sensação de que não existe espaço possível para que os personagens se livrem da violência sutil das coisas que os envolvem.

Revendo os filmes, já livre dos labirintos de mistério para onde nos empurram suas imagens-enigma (o quarto escuro em Duas Fitas; um travelling do mesmo curta que segue o corredor da escola e vai a destino algum; a árvore que esconde a mulher em cena em Crédito), se torna ainda mais forte a sensação de uma realidade impregnada de uma violência ao mesmo tempo sutil e onipresente, espalhada por todos os espaços observados, por todos os universos percorridos, o da escola, o da família, o do trabalho. Essa violência do banal, corriqueira, às vezes lembra o cinema de Haneke, ainda que nunca encerre em si qualquer tese sobre a realidade. Um outro curta brasileiro, Alto Astral, parece erigido com um cinismo e violência parecidos, tanto no esvaziamento emocional quanto na secura da mise-en-scène – mas o absurdo do curta cearense é mais acentuado, carrega menos índice de realidade e produz mais estranheza que mal-estar de fato; é um filme que mais representa o mal-estar do que o reproduz, mas que certamente representa também o que de mais estimulante se tem produzido hoje no Brasil.

Vários dos curtas dessa recente safra voltaram seus olhares para o universo escolar, e em muitos está presente a violência que o ambiente propicia e propulsiona, como Nº 27 ou Não Me Deixe Em Casa. O gesto de observar de perto esse universo trouxe imagens muito fortes, tanto na solidão brutal de Nº27 quanto nas sensações abortadas de Não Me Deixe Em Casa, mas nenhum deles parece tão distante de encerrar qualquer moral, de permitir uma visão determinista da realidade, quanto Duas Fitas. Até porque as implicações das ações que vemos são tão mínimas que as reações não se traduzem em cena. Tudo é devorado intimamente, tudo é contenção, e alimenta a angústia que envolve o filme. Um garoto que arrasta uma cadeira para mais distante do colega; o garoto que acorda com pesadelos e, no dia seguinte, ao sair do médico, insiste para a mãe que não adianta ir à escola pois não poderá entrar; o empréstimo de uma fita prevê condições; o pai se impõe sobre a mãe, um colega sobre outro, a escola sobre o aluno.

Os dois filmes parecem de alguma forma traduzir a sensação de um enorme mundo invisível que se impõe, que pesa sobre seus personagens. E não faz diferença saber, por exemplo, o que acontecerá a partir dali. O empreendedor de Crédito, o homem desempregado que tem uma visão, não precisamos desvendar seu futuro, sofrer com ele, entender seus sentimentos ou suas escolhas. A nós, basta acompanhar seu olhar e sentir as palavras da mulher que se descarregam como um caminhão de brita, dizendo que o filho aprendeu a usar o penico. Os filmes nos oferecem um dos olhares mais cuidadosos do cinema brasileiro contemporâneo: um cinema estranho, de detalhes mínimos, de sentidos ocultos, rostos ocultos, sem respostas grandiloqüentes ou imagens sedutoras, sem saída, sem fim, cheio de uma vontade de vida que, reprimida, se debate estranhamente na tentativa de encontrar seu espaço no mundo, sua expressão.

Janeiro de 2010

editoria@revistacinetica.com.br


« Volta