Drive, de Nicolas Winding Refn (EUA, 2011)
por Raul Arthuso

Um filme contemporâneo

Um filme americano: Tipografia e música dos créditos iniciais de Drive já indicam o universo ficcional que o diretor Nicolas Winding Refn vai buscar como referência: os anos 80, mais especificamente o cinema de ação da virada da década de 70 para essa. Porém, Drive não é um filme fetichista; não tenta emular cacoetes visuais da época, nem se fazer parecer através da direção de arte, dos figurinos, da maquiagem. Chama a atenção o quanto Drive é um filme feito com a consciência de sua razão de ser, seu tempo e seu lugar, portanto ciente de seu lugar histórico como um filme de ação, feito no país dos filmes de ação, num momento em que esse tipo de filme tornou-se um monstro megalomaníaco.

Numa década em que esse gênero consagrou os super-heróis dos quadrinhos e a tecnologia de Transformers, fazer um filme de ação centrado no humano é quase um ato de política cinematográfica. A trama de Drive contraria várias tendências do cinema deste início de século. A começar por seu grande motivo central: o dinheiro, algo que saíra de cena pós-11 de setembro. Pois, até por certas contingências do imaginário americano do período, os heróis voltam-se para o combate do mal e suas forças (em geral estrangeiras) tentando dominar o mundo, ou são a salvação da humanidade contra seres não-humanos. Contudo, na sociedade capitalista, o dinheiro nunca deixou de ser o motor de parte das relações, principalmente aquelas feitas às escondidas (com a Máfia como símbolo máximo disso). Na esteira de uma crise econômica global recente, Drive propõe um retorno ao tema: o dinheiro, o submundo criminoso, os gângsteres locais; enfim, as relações de poder capitalistas estão no centro da trama.

Há um poderoso local, Bernie (Albert Brooks), cuja real extensão de poder ou vilania permanece misteriosa, se não pela quantidade de dinheiro que tem. Já o protagonista sem nome, conhecido como The Driver (Ryan Gosling), tem apenas suas mãos, única arma para garantir a salvação de Irene (Carey Mulligan), a garota por quem se apaixona. The Driver é um homem comum jogado dentro de uma situação que não lhe pertence, mas que terá de resolver. O próprio personagem ser referido ao longo do filme por sua profissão realça esse caráter prosaico da trama. Ele não quer dinheiro, mas o dinheiro ronda sua vida: ele vai dirigir um carro de corrida patrocinado pelo chefão local; vai ajudar Standard (Oscar Isaac), marido de Irene, a pagar suas dívidas a um bandido; uma alta quantia pertencente à máfia cai na sua mão, mas ele quer devolvê-la apenas. O que o torna um herói aqui é sua recusa em sujar-se com o dinheiro, mesmo isso se mostrando impossível. Se não for o dinheiro, será o sangue derramado para não se envolver com ele.

Essa concepção de trama girando em volta do dinheiro e das relações do submundo foi cristalizada pelo cinema de ação dos anos 80. Retomar o tema não é, em Drive, um ato de saudosismo. Se o cinema de ação dos anos 2000 preferiu jogá-lo para escanteio, Refn parece ter a percepção de que este é um tema que nunca perde relevância, pois essas relações de submundo são algo bastante próprio da sociedade americana, e por extensão, do seu cinema. Que isso seja uma assertiva de um diretor europeu é bastante surpreendente. Em dado momento do filme, Bernie revela ter produzido alguns filmes que misturavam ação e erotismo e foram considerados europeus demais por seus conterrâneos. Drive é uma criação de sinal invertido: um filme de um diretor europeu plenamente americano.

Um filme físico: O aspecto físico de Drive também realça sua oposição com o cinema de ação da era Transformers. Pois, o cinema de ação americano tornou-se um elogio da tecnologia: armas e acessórios complexos e modernos, carros que praticamente andam sozinho, robôs, jatos, naves espaciais. O homem é o acessório da máquina (algo que, num certo sentido, está muito presente em Christine – A Máquina Assassina, de John Carpenter). Até por isso, pode-se supor a razão de os temas se voltarem para a salvação do mundo. O homem saiu de cena no cinema de ação da última década. Drive recoloca-o no centro do problema. E suas soluções são físicas. Nas cenas de fuga, não importam muito as ultrapassagens, batidas, freadas e outros efeitos do tipo, mas sim como a personagem reage e as realiza. A câmera se posiciona muitas vezes dentro do carro, ou com The Driver em quadro ou imitando seu ponto de vista através do vidro. Não é uma questão de dirigir rápido ou furioso, mas de fazer o que deve ser feito bem, tendo como referência a ação do personagem.

Refn retoma o herói machão-solitário-lacônico dos anos 70 e 80, no limite do anti-heroísmo. Uma frase importante do filme é a de The Driver sobre seu trabalho: ele não ajuda no serviço, não anda armado, não sai do carro; ele apenas dirige. E é isso que se verá ao longo do filme: um homem que não fala, faz. Impressiona a capacidade de Ryan Gosling em criar as nuances das sensações da personagem, interpretando com poucas expressões e gesticulações, transformando cada uso do músculo numa nova informação sobre si. The Driver é uma espécie de herdeiro do laconismo de Clint Eastwood. Suas falas são curtas e secas, suas respostas aos outros, implacáveis; seu andar vagaroso é frágil, porém direto, dominando a tela com um jeito de se portar que, naquele instante, significa tudo.

Um filme de mise-en-scène: Pois Drive é um filme de profunda crença no pôr em cena. Sua trama não se desenrola com pistas falsas ou rocamboles conspiratórios, típicos de um certo cinema americano que se pretende profundo (que tem em A Origem talvez seu exemplo mais recente). As cenas são francas e diretas, a câmera mostra tudo que tem de mostrar sobre sua trama, seu universo ficcional, suas personagens, e não deixa a impressão de que algo está em falta. Vem daí a potência do filme: a sensação de ter o homem no centro da questão e do domínio do ator naquele espaço, pois as escolhas de câmera se fizeram a partir desses elementos. E isso é uma indicação desse gosto pela mise-en-scène em Drive: o espaço está ali, nele o homem age, a câmera pega esse momento.

Em determinada cena do filme, The Driver encontra-se no elevador com Irene e um homem desconhecido. Ao perceber que ele porta uma arma, The Driver, em um de seus mais expansivos gestos, afasta com o braço a mulher, vira-se e a beija antes de pegar o homem desconhecido e enchê-lo de porrada, impedindo-o de usar a tal arma. Assustada, Irene sai do elevador assim que a porta se abre e olha incrédula para The Driver, enquanto a porta se fecha novamente. Espanta a capacidade de Refn de deixar tudo dito com simples elementos: o gesto de proteção do protagonista que precede o beijo, a fúria de sua reação para proteger a mulher amada movida pelo instinto, não pela razão; a surpresa de Irene com uma faceta revelada pelo lacônico homem sem nome. A potência de Drive está em Refn dar chance a tudo que está em cena significar algo. É por sua surpreendente auto-consciência, noção de seu lugar no mundo e por voltar seu olhar para o homem e suas ações que Drive é, além de potente obra, um filme contemporâneo.

Outubro de 2011

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