Dom Hélder Câmara: O Santo Rebelde,
de Érika Bauer (Brasil, 2005)
por Francis Vogner dos Reis

Martírio da memória

Convém enquadrar Dom Hélder Câmara: o Santo Rebelde em duas tendências do cinema nacional: cine-biografia e documentário informativo, ambas com seus princípios, objetivos e funções muito bem resolvidos e fechados. As cine-biografias visam criar um imaginário, uma galeria de personalidades que fundam o Brasil novo (ou o novo brasileiro), mártires e heróis que simbolizam um país em que seus rebeldes – intelectuais ou "gente do povo" – tomaram o poder. Assim, é compreensível o interesse por Olga Benário, Cazuza, Glauber Rocha, Vinícius de Moraes, Vladimir Herzog, Zezé di Camargo, e mais recentemente Zuzu Angel (e, daqui há pouco tempo, Frei Betto – quando Batismo de Sangue, de Helvécio Ratton, chegar às telas). Com relação ao fato de ser documentário, a condição ao se enquadrar nesse gênero é a de estabelecer uma revisão da figura do arcebispo de Recife e Olinda por meio da reflexão e da rememoração 'reais' dos amigos, parentes, religiosos, personalidades e sociólogos por meio de entrevistas, matérias de jornal, imagens de arquivo, além de frases e depoimentos do próprio Dom Hélder Câmara.

Dom Hélder Câmara: o Santo Rebelde parece ser todo realizado de uma maneira que visa atender uma demanda funcional: informar o espectador desavisado. É tão fechado em seus objetivos de esclarecer ao espectador sobre quem é o seu personagem, de levantar informações importantes sobre sua vida, sua rebeldia, sua fama, sua santidades, que não difere dos relatos que se baseiam na informação (alguns livros, jornais, programas de TV) como fonte de verdade. E como é uma biografia, não se furta em ser totalizador e tomar a linearidade como meio de revelar a superação e a conseqüência de um fato sobre outro.

Não há, absolutamente, problema nessa forma (linearidade e abordagem integral), mas aqui é um método que absolutiza o discurso, o fecha em torno de si mesmo. O filme simplesmente não tem brechas para respirar. É invadido por uma avalanche de imagens e sons que eliminam por completo qualquer espaço vazio que possa ter e, por consequência, lhe insuflar vida. Sua herança, sua afinidade com programas televisivos, vem daí: da recusa de qualquer espaço. É a opção entre a busca por conhecer um personagem (como todos os vácuos a que isso tem direito) ou a simples reprodução das informações mais redundantes.

Não por acaso a memória chama pela série de documentários "O Curso do Poeta", exibidos recentemente pelo Canal Brasil. Esses documentários de David Neves e Fernando Sabino sobre escritores brasileiros não se furtam em falar da poesia por meio de algumas imagens dos poetas ou de lugares e situação ligados a eles. Os diretores fazem o esforço em entender os escritores e as obras, não tendo problemas em perdê-los no meio do caminho, perdê-los justamente em função da junção desses autores e de suas poesias. Sabino e Neves fizeram um documentário com os escritores (no caso Vinícius de Moraes, Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto e Carlos Drummond de Andrade), não sobre suas histórias pessoais.  Guardadas as devidas diferenças, não dá pra não repensar, a partir desses poucos pontos de partida, o procedimento de construção de personagem em Dom Hélder. O peso do personagem e as obrigações da diretora com a dimensão dele asfixiam qualquer possibilidade que seu filme tenha de construir um discurso mais livre. Não seria questão de desconstruir o mito (como se essa fosse uma solução para o imperativo afirmativo do documentário), mas de burilar o interesse da montagem por Dom Hélder.

Em muitos momentos vê-se acenar possibilidades, já que Dom Hélder tinha consciência plena da força de sua imagem, como cristalização de sua própria crença. Algo que algumas personalidades do catolicismo – na figura de um líder e profeta – e a mídia conjugados conseguem fazer muito bem, talvez melhor do que ninguém: se auto-construír em mito, personificar um paradigma. O bispo vermelho (como era chamado pelos militares) tinha uma vocação antológica de se fazer protagonista (chamando também ao protagonismo quem o ouve), e de não separar seu destino histórico de seu destino humano. Mas essa é a figura de Dom Hélder de modo geral, não a imagem que o filme de Erika Bauer conseguiu construir. Entendê-lo como o profeta que foi seria deixar ressoar essas vibrações, não domesticá-las da maneira como foi feito.

Por isso, nesse caso e voltando à sentença inicial, questionar a razão da existência do filme não é indagar sobre a importância dele como fato cultural – já que ele parece bem acomodado em uma função, digamos, educacional – mas sim como fato estético. O estético chama o histórico e ai Dom Hélder Câmara: o Santo Rebelde entra no ramerrão dos filmes brasileiros em que a história é morta: um fenômeno plano que se basta pela "lição".


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