in loco - cobertura do 45o festival de brasília
Doméstica, de Gabriel Mascaro
por Fábio Andrade

Dramaturgia imponderável

Quando escrevi aqui na Cinética sobre As Aventuras de Paulo Bruscky, de Gabriel Mascaro, uma das notas que ficaram fora do texto dizia respeito à impressão de um projeto de pensamento sobre cinema compartilhado entre Gabriel Mascaro e Marcelo Pedroso. Paulo Bruscky avançava alguns dos desejos de Pacific: enquanto Pedroso se dedicava a construir um filme “sem filmagem”, “sem direção”, o curta de Mascaro, feito todo pelo Second Life, era um filme “sem câmera”, “sem matéria” (e as aspas só estão aí porque é claro que todas essas coisas existem nos dois filmes). Naturalmente, há semelhanças com outros documentários de arquivo (Pacific) ou filmes de animação (Paulo Bruscky), mas ambos eram movidos por uma outra inquietação menos material – tendendo à imaterialidade – que diz respeito às possibilidades criativas diante de certo descontrole. Se a melhor produção documentária é geralmente (embora nem sempre) marcada pela abertura ao imponderável, Pacific e Paulo Bruscky buscavam novas modalidades possíveis desse descontrole. Em uma época em que essa imponderabilidade já se encontra cerceada por padrões muito estanques oriundos da televisão, das artes visuais e do próprio documentário, a inquietação por si já era louvável. Mas, mais do que isso, era um tiro no alvo certo: do descontrole, surgia a chance de dramaturgia.

Doméstica, de Gabriel Mascaro, é um novo passo nesse mesmo caminho. Sete adolescentes são convidados a realizarem um documentário sobre suas empregadas domésticas. Mascaro não participa ativamente de nenhuma das filmagens,dirigindo por meio do trabalho como idealizador, curador e editor desse material - tanto o humano quanto o audiovisual. Se o interesse pela questão de classes em Um Lugar ao Sol e Avenida Brasília Formosa se somaà univocidade do título em uma impressão de painel, a primeira grande surpresa aqui é justamente como o filme parte de um recorte tão delimitado para ampliá-lo de dentro para fora. Doméstica é, na verdade, um filme de personagens. Há certa ironia em perceber que todos os outros documentários de longa-metragem exibidos na competição do festival se concentravam de maneira supostamente tão irredutível em personagens dignos de título – Um Filme para Dirceu; Kátia; Otto... e, em seguida, Elena e Olho Nu, um filme-perfil de Ney Matogrosso –, mas é Doméstica, justamente o de título mais generalizante, o que mais se dedica a de fato construí-los.

Partindo de uma primeira personagem bastante tipificada do mundo das empregadas domésticas – Vanusa, mulher marcada pela dor de amor, que encontra certo conforto no universo radiofônico popular – aos poucos, personagem a personagem, o filme desdobra seu título de maneira sempre improvável, dando-lhe novos rostos, cenários e ações, cada vez mais distante do registro estereotípico deste primeiro encontro. A partir do recorte de classe, Gabriel Mascaro cria mais do que um panorama de tipos, mas uma coleção de pequenos retratos que não se anulam ou se complementam; apenas existem em tela, construídas da maneira mais inteira que se pode imaginar. Gracinha, Flávia, Vanusa, Lena... todas as personagens de Doméstica são cuidadosamente desenhadas para existirem em lugares e relações muito específicos, justamente para que possam se afirmar únicas.

A partir dessa unicidade, cada personagem rebate na estrutura que a determina, provocando alterações no próprio corpo e abalando levemente a estrutura com o choque. Para isso, é crucial que Gabriel Mascaro não se deixe fascinar com a mais-valia antropológica que o material inevitavelmente carrega, e encare o delicado desafio de criar dramaturgia a partir dele. Isso se dá tanto nos blocos individuais – como no caso da doméstica que tem hábitos noturnos, revelação feita logo no começo de seu bloco e que será construída como um filme de suspense – quanto na ordenação e conexão entre os blocos. Enquanto Pacific se montava feito um coral, articulando as diversas perspectivas em uma única grande arca, Doméstica tem uma voz única que se reconfigura com o avanço no tempo. Além do cuidado em fazer com que cada personagem respire em seu próprio espaço, a organização feita pelo diretor (e seu montador) é norteada pelo desejo de que esse espaço geral – esse título tão sintético e singular, que fala não só de uma atividade, mas também de um espaço, de uma relação e de tantas outras coisas – também se reorganize internamente. A cada nova personagem as chaves dão mais uma volta, mais uma volta, mais uma volta, como se o ímpeto de definição tentasse trancar uma porta que não se permite fechar.

É justamente aí que Doméstica se torna um filme político. O cinema de Gabriel Mascaro sempre esboçou esse desejo, mas por vezes parecia confundi-lo com uma possibilidade de panfleto. Em Doméstica, porém, há uma simples percepção que se impõe: se há possibilidade de política na arte, ela está justamente em deixar as portas escancaradas. Pois a montagem inclui também as imagens dos jovens por trás da câmera e de seus familiares em relação – em alguns casos, mais antigas do que os olhos de quem filma – com os empregados, seus filhos, suas famílias, suas histórias. Essa cuidadosa construção embaralha as extremidades do sensível, pois demanda a reorganização dos limites entre público e privado, documentarista e documentado, trabalho e afeto, causa e consequência, masculino e feminino, campo e contracampo – e neste festival foi exibido também A Onda Traz, O Vento Leva, curta de Mascaro que explora outras possibilidades de manifestação dessa política, de maneira tão forte e bonita quanto aqui.

A política dessa reorganização se completa justamente no fato de que, após a sessão, voltaremos ao mundo... na melhor das hipóteses, com uma outra perspectiva. A partir do que há de mais específico e localizável, Gabriel Mascaro chega a questões amplas que, de tão arraigadas na experiência cotidiana, sequer conseguimos notar. A política do filme está justamente em ressaltar a carga histórica que vem em cada gesto descompromissado, em cada padrão que repetimos na distração de nossa coreografia cotidiana. Se a sociedade brasileira vive a partir de códigos tão introjetados que sequer percebemos como chagas, não cabe ao cinema fechá-las, tampouco abrir novas feridas; mas há a possibilidade de localizar com precisão onde elas estão e deixá-las abertas, bem abertas.

Setembro de 2012

editoria@revistacinetica.com.br


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