história(s) do cinema brasileiro
DocTV: Uma outra percepção do documentário
na TV por Cléber Eduardo Um
programa de documentários para televisão, financiado pelo governo federal, com
conteúdo produzido em 27 Estados e exibição garantida em ampla extensão territorial
(por meio das tevês educativas), pode soar como projeto de identidade nacional.
No entanto, um nacional múltiplo. O contato com a soma das diferenças e peculiaridades
de cada região nos faria pertencer a uma unidade (o Brasil e seu povo), mas uma
unidade construída em nome de uma cultura nacional composta de multiplicidade.
Somos muitos e apenas um. Como expor as diferenças sem tratá-las como parte do
pertencimento ao Brasil? Um programa de fomento e exibição pelos mecanismos públicos
não carregaria um tanto de programa de cultura? Não estaria em busca de uma construção
identitária pelo acúmulo das diferenças?O DocTV
estimula essas perguntas e nos dá algumas respostas. O programa de documentários,
que já se encontra na terceira edição, tem 69 trabalhos exibidos até agora e 46
prontos para exibição. Selecionados por uma comissão que escolhe os contemplados
em regime de anonimato, cada beneficiado tem orçamento de R$ 100 mil e prazo de
150 dias para ficar pronto. Os programas dos dois primeiros anos, 60, estão sendo
lançados em DVD desde o fim de 2006. Um acompanhamento de parte desse universo
não permite ainda constatações precisas ou confiáveis, mas propicia uma visão
parcial do conjunto, já bastante esclarecedora. Não se trata de construir ou manter
uma noção de brasilidade, ou de privilegiar conteúdos reveladores de nossa identidade,
como levantado acima, mas de fomentar uma livre noção de olhar documental, que
tanto pode se ater ao compartilhamento da informação, ou à organização da realidade
abordada, quanto pode investir na sensorialidade do espectador, sem querer ensiná-lo
sobre nada. Parte do já amplo material exibido busca registrar
a tenacidade de determinados espaços e tradições ameaçados em sua pureza e isolamento,
cujo registro ganha caráter de arquivo e memória dos traços de um grupo (e pela
soma dos grupos, traços de um povo). É o caso de Mapulawache, A Festa do Pequi,
de Aiuruá Meinako, que filma em sua aldeia, no Alto Xingu, os rituais de interação
espiritual com a natureza, aparentemente preocupado, antes de tudo, em preservar
pela imagem os rastros históricos de um grupo social. Não importa em um trabalho
como esse se as experiências coletivas mostradas a nós foram “capturadas” enquanto
aconteciam ou se foram provocadas pela presença da câmera e da equipe para ilustrar
uma manifestação da cultura da tribo (a exemplo de Nanook, de Robert Flaherty).
Importa o registro daquelas situações, transmitidas a nós menos como imersão e
mais como informação resumida – embora sem nenhum tom professoral, apenas com
uma ou outra seta indicativa. Uma outra vertente do DocTV,
tanto quanto informar, organizar e explicar, reivindica do espectador uma outra
sensibilidade, menos de conhecimento sobre um assunto, uma personalidade, um evento
histórico ou um espaço geográfico-social, e mais de envolvimento com a linguagem,
seja na construção de universos poéticos, seja nas elaboração de dissonâncias.
Nesses trabalhos, há uma valorização do olhar, às vezes mais que do assunto, com
uma forma livre de lidar com os sons e as imagens, uma vontade de não se mostrar
de forma óbvia qualquer plano, o esforço de ter uma assinatura estilística, faminta
por efeitos plásticos e sonoros. Percebe-se momentos de potência nessas linguagens
auto-evidenciadas. Outros são asfixiados por excesso de autoria – valorizada no
destaque ao nome do diretor na capa dos DVDs. Mas o mais importante a notar é
um quase explícito programa de libertação do olhar. A preocupação
com a forma está presente em narrativas organizadas com as mais diferentes estratégias,
com uso ou não de entrevistas, com eleição ou não de um assunto concreto, com
menos ou mais informações sobre seu “tema”, com maior ou menor distância da experimentação,
com presença ou ausência da equipe no quadro e no som. Mas essa preocupação formal,
em várias passagens, pode perseguir o efeito artístico. E o diretor começa a correr
o risco, a partir da busca incessante do artístico, de lidar com o material como
pura massa de modelar. Há casos
e casos nessa busca de uma percepção mais sensorial por parte dos documentários.
Um dos mais impressionantes, pelo grau de experimentalismo, é o de Uma Encruzilhada
Aprazível, do cearense Ruy Vasconcelos (foto que abre o texto acima, e do
qual trato em mais detalhes em outro texto), que
se aproxima de um lugar por fragmentos quase autônomos. Há menos ali a meta de
documentar qualquer coisa, para depois nos ensinar sobre elas, e mais a composição
de uma bela imagem com espírito poético. Mas o que parece conceito, eventualmente,
soa como solução fácil. É possível desconfiar de uma aleatoriedade na escolha
de planos em alguns momentos. Documentário-sensação. Não estaríamos distantes
de Acidente, de Cao Guimarães e Pablo Lobato, já discutido aqui na revista
e também parte da grade de DVD do DocTV. Nessas iniciativas, o que está em jogo,
antes da transmissão da informação sobre qualquer tema, lugar ou contexto, é o
cultivo de uma percepção. O encadeamento das imagens e a ausência de “índices”
de uma realidade, ali manuseada como “formas”, nos convida a uma aproximação mais
sensorial. Realizado
por Marco Antonio Ribeiro, Fernando Uehara e Caetana Brito, Paraíso também
arrisca-se pelo experimentalismo poético, dando-nos a ouvir lembranças de pessoas
anônimas (raramente filmadas), com angústias e arrependimentos, com recorrentes
exposições de deslocamentos. Enquanto ouvimos os entrevistados, vemos imagens
que, em vez de ilustrar as palavras, seguem na paralela dos depoimentos, mostrando-nos
situações conotadas como líricas. Enquanto alguém narra um evento do passado,
é nos dado a ver uma borboleta andando na janela, em um plano longo, lânguido,
quase abstrato, que pede filiação no campo das vanguardas. Mas
onde está a fronteira entre um vale tudo na relação som/imagem, sem necessariamente
potência no esforço de inventividade, e uma construção com efeitos inesperados
e produtores de novas percepções com o material? Em Paraíso, um desses
momentos, ao menos o mais memorável, se dá quando, depois de ouvirmos uma jovem
dizer que contará uma história, corta-se a palavra dela, entrando um som de avião
na imagem do disco rodando na vitrola, antes de um outro corte, agora para uma
imagem do céu. Em outros momentos, contudo, palavra e imagem, quando não concorrem
entre si (gerando mais dispersão que a pretendida imersão), não se complementam.
Uma vai para cada lado e a narrativa oral, por ser narrativa, acaba se sobrepondo
à informação visual. A imagem parece sobrar. Mas mesmo em
trabalhos aparentemente mais convencionais, como Assombração Urbana com Roberto
Piva, de Valesca Canabarro Dios, ou Negativos, de Angel Diez, sobre
os quais me deterei mais detalhadamente em breve aqui na Cinética, o fato de usarem
entrevistas não os impede de buscar pontos de saída. Curiosamente, os dois têm
estratégias opostas. Assombração Urbana é sobre o poeta Roberto Piva. Ele
é ouvido pela equipe sobre poesia – a dele em particular – e a equipe ouve vozes
do saber sobre ele. Aproximação com o objeto para tentar capturar algo, imagens
de arquivo dele no passado, explicações sobre seu trabalho, anedotas sobre sua
atitude. Procura-se entender o mosaico Piva e adotar uma linguagem prima do poeta
que recuse a organização desse aparente didatismo para se irmanar com sua poesia,
sem nunca abrir mão nessa operação de um tom explicativo sobre as opções. Negativos
é sobre a memória de Pierre Verger, mas através da memória de Arlete Soares, assistente
e editora dele, unindo a informação de quem testemunhou o “tema” e a subjetividade
de quem fala no documentário. Não é sobre Verger, como Assombrações Urbanas
é sobre Piva, mas sobre a memória de Arlete – que, por sua vez, é sobre ela com
Verger. Não se ouve vozes do saber, a voz de uma subjetividade. Uma memória de
afetos e ressentimentos, sem explicações de fora do objeto humano eleito por Diez,
procurando a informação organizada, sim, mas organizada menos pela montagem e
mais pela oralidade da entrevistada. Há aqui os riscos da personagem única. Arlete
vai se desnudando emocionalmente, trazendo muito de si, de sua relação próxima
com Verger, mas, eventualmente, seu rendimento como atração exclusiva perde gás.
Não
deixa de ser em parte um problema de Calabar, de Hermano Figueiredo, mas
por razões bastante distintas. A perda de gás se dá agora pela obsessão em fugir
da obviedade, colocando entrevistados (vozes do saber) envoltos na sombra, ou
fundidos à imagens de fundo, em busca de efeitos plásticos, ocasionalmente postos
em conflito com as palavras e explicações. Sua luta por fazer o documentário pedagógico
sem assim parecer é árdua demais. Para um documentário didático, estetiza-se demais
para criar uma conotação artística. Calabar nos parece claramente um sintoma,
não despido de grande interesse, da asfixia pela demanda excessiva de criativa.
Nesses momentos, a noção de autoria, se não chega a ofuscar o material, também
não o beneficia. O DocTV parece claramente motivado a proporcionar
uma outra maneira de ver documentários – não apenas com os ouvidos e com a leitura
de letreiros/cartelas – e incentivar maneiras mais livres para “documentar”. Não
se está atrás do Brasil ou do brasileiro, mas de diferentes modos de se estruturar
um olhar, ora com maior empenho em transmitir algo de objetivo, ora com a proposta
de relacionar-se em um registro mais poético. Os excessos e riscos fazem parte
desse processo que parece visar uma provocação do espectador (e não uma concessão
ou facilitação para ele). Cinética começará agora uma série de ensaios
a partir de títulos específicos, para abordar de maneira mais precisa as características
de determinados trabalhos, suas potências e seus problemas, com o intuito de atentar-se
para as visões e olhares surgidos desse conjunto.
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