ensaios A
fotografia em cena, a fotografia encena por Cléber
Eduardo Se
o documentário foi fundado e ainda se sustenta sobre a imagem como índice e efeito
de real, seja menos ou mais organizada como produtora de sentidos, mais transparente
ou com maior intervenção, acabou por se tornar (com o telejornalismo) superior
à fotografia na hierarquia da imagem realista. Uma imagem com movimento, com o
fragmento da vida em um período contínuo de curta duração, é mais impregnada de
real, digamos, que a imagem congelada de uma foto. E está a serviço de uma organização
audiovisual no qual palavras, imagens de arquivo, imagens exclusivas do documentário
e as fotografias ali empregadas, somadas ou isoladamente, procuram alguma verdade
sobre alguma coisa. Exemplo banal: um álbum de fotografias de Noel Rosa, embora
nos mostre como era fisicamente o compositor e ateste sua existência, tem menos
presença e índice de existência, hoje, que uma curta imagem de Noel Rosa no curta
Cantor de Samba, de Alex da Silva, com o compositor em apresentação com
a Banda dos Tangarás. As variações de movimentos no mesmo enquadramento, no caso
movimento dos músicos, é um plus realista ausente nas fotografias. Embora
possamos pensar em Andre Bazin e sua noção de ontologia da imagem fotográfica,
com a apontada falta de mediação de operação humana direta na matéria-prima fotografada
(ao contrário, como afirma Bazin, da pintura), ou mesmo na combinação de “imaginar
ver” e “transparência” teorizada por Kendall L. Walton, a fotografia perdeu status
de revelação impressa, substituída, nesse posto, pela imagem eletrônica ou analógica,
como as câmeras de TV, os vídeos amadores com momentos exclusivos e as câmeras
de vigilâncias descortinadoras de dúvidas. Pensemos na sua utilização única e
sucessiva no caso midiático da menina Isabella, com a recorrente imagem do casal
de suspeitos no supermercado, que serviu de prova para se constatar o uso da roupa
deles na noite do crime contra a criança. Seria possível hoje, com tantas câmeras
instaladas e espalhadas pelo mundo, utilizar a fotografia, com essa mesma indicialidade
do verídico, em um inquérito policial? Podemos pensar na foto de denúncia da infidelidade
de uma namorada de Chico Buarque, ambos flagrados por um paparazzo em uma
praia, mas essa revelação é de algo ocorrido e, por mais repetitivo que possa
ser o uso da foto, não têm o mesmo pulsar de dado real de um vídeo como o de Cicarelli,
também ela em situação sexual em uma praia. A foto carrega o sentido de “aconteceu”;
o video, o de está acontecendo sempre de novo. No entanto,
em alguns documentários, dentro do universo da produção brasileira dos anos 2000,
a fotografia voltou à “cena”, com especificidades
dramáticas (Seo Chico, de José Rafael Mamigonian; Hércules 56, de
Silvio Da-Rin); como instrumento poético (Diário de Sintra, de Paula Gaitan
- foto que abre o texto); como revelação de traços de memória e subjetividade
(O Prisioneiro da Grade de Ferro, de Paulo Sacramento, Nelson Freire,
de João Moreira Salles); como material narrativo (Santiago, de Salles).
Não se trata, nesses casos, de ilustração. Sequer de um retorno do passado em
forma de repetição contínua. Nem de muleta, última saída, falta de outra imagem,
a substituir imagens de arquivo com movimento. Os procedimentos nestes filmes
são parte da própria cena, da experiência mostrada, e dão um status outro às fotos.
São exemplos nos quais a fotografia funciona como estímulo de reações de seus
personagens. Ou como expressão de seus autores. Elas interagem com as experiências
dos filmados, elas muitas vezes são a motivação dessas experiências. Não
é mais como registro de uma máquina neutra, comprometida com a fidelidade ao real
e sem interferência do olhar de quem enquadra, como pensava Bazin, que a fotografia
está incorporada nesses documentários. A fotografia é incorporada nesses casos
pela personalização. Ela já é resultado de um olhar, é dirigida a um olhar, está
carregada de sentimentos, de subjetividades, de apagamentos, sem nenhuma objetividade
documental. Ela é uma Madeleine, não um registro do real. É um rastro, um traço,
um resíduo, mesmo se for uma foto histórica, como a de Hércules 56, que
carrega um instante e um símbolo de um país em dado momento, mas está no filme
menos para ajudar a contar essa história e a História com as informações contidas
em seu quadro, mais para ser uma imagem em torno do qual a história vai ser recontada
e a História vai ser construída em suas particularidades. No
documentário de Silvio Da-Rin, a foto estrutura toda a narrativa. Quem está nela?
Como se deram os acontecimentos geradores daquele registro? Se essa foto só eventualmente,
em momentos de enorme importância, estimula reações a ela, não podemos ignorar,
como já havia notado Rodrigo
Oliveira na Contracampo, que tal imagem é o núcleo do filme. Hércules 56
é a História e a história de uma foto. Uma foto que, por sua contingência muito
especial, ao mesmo tempo específica e sintomática, revela resíduos da História.
Por meio da memória e das organizações discursivas e retroativas de seus protagonistas,
descortina-se histórias (em minúsculas), percepções pessoais, falhas de memória,
pulsar humano em meio a um processo quase mítico (a luta armada), com seu esforço
de tirar o trem dos trilhos e mudar o rumo de um percurso de país, tudo muito
grande para caber em única foto. Portanto, Da-Rin, de certa forma, vai ao extracampo.
Ao que está, digamos, no entorno da foto. A foto é de um
grupo em exílio, formação de futebol, uma parte de pé, outra agachada à frente.
Deslocamento do individual – para fora do Brasil – sem a mudança do coletivo.
É a foto de Hércules 56, um grupo que posa, um avião que pousou, revolucionários
que, em seu fracasso, tornam-se sobreviventes. Derrota e vitória ao mesmo tempo.
Todas as possibilidades de sentido, de leitura e de sensações derivadas dessa
foto, na verdade, estão presentes no conjunto dos depoimentos. Hércules 56,
ao contar a história dessa foto na História do Brasil, dá movimento a essa imagem
congelada. Faz ela se tornar a foto de uma comunidade sem perder a condição de
memória individual. E é a individualização de uma foto “coletiva” que Hércules
56 de certa forma opera nessa relação entre a imagem índice e a imagem memória. Imagem
memória. Imagem estímulo. Imagem semente. Imagem cinzas. Paula Gaitán transita
por todas essas condições da foto em Diário de Sintra, quando, ao retornar
ao lugar onde Glauber Rocha passou seus últimos meses, devolve-o a seu sítio final
por meio de suas fotos, plantando-as nas árvores, mostrando-as para as pessoas
na rua, colocando-as no fluxo da água, fundindo-as com suas próprias mãos (as
de Paula), como se a vida ali (nas mãos dela, em movimento de ondas) virasse imagem,
como se a imagem (as fotos de Glauber) voltasse à vida. De fato, volta. Em dado
momento, depois da foto seguir o curso da água, ela retorna na forma de cinema,
Glauber de costas para o mar, como se o movimento da maré transformasse foto em
cinema, morte em vida, a imagem congelada em imagem em movimento, o embalsamento
em ressurreição. Nesse momento, o da foto transmutada em cinema, da falta de movimento
para o movimento, retornamos à questão inicial, a da imagem da vida e a da vida
em morte. O que é uma foto? O que mostra para quem nada
sabe do fotografado? Quando duas imagens de Glauber são submetidas ao reconhecimento,
duas mulheres acreditam que Glauber é um galã português, depois uma passa a ter
dúvidas, mas a outra não. Ambas estão convictas de que, galã ou não de televisão,
ele é um português. Alguém fala em olhos de revolucionários. Uma foto, um instante,
um enigma, uma revelação. O espírito de busca metafísica e romântica de Paula
Gaitán se dá por meio dos mistérios dessas fotos de Glauber. O que são essas imagens?
O que elas motivam quando estão despidas de discursos históricos sobre o sujeito
nessa imagem? Quem é essa imagem sem esse sujeito? Quem é esse sujeito das imagens?
Essas imagens são, ao mesmo tempo, as cinzas jogadas ao vento e, em movimento
dialético, cinzas trazidas pelo mar. São despedida e revitalização. São a comprovação
da morte, o luto, a memória da vida, mas também uma solicitação, um pedido de
retorno, só possível agora pela imagem do cinema. Tomemos
um outro caso, o de Seo Chico, menos artístico, menos estetizado, que não
tem o apelo, inevitável, da intimidade célebre, como é o caso de Glauber. O fabricante
artesanal de cachaça, em certo momento, ganha uma foto de seu pai, presente do
diretor do documentário, e entra com ela em casa. Depois de algum tempo, segundo
somos informados por uma cartela, solicita a presença do diretor. Passa a reagir
à semelhança de uma das fotos com sua lembrança do pai, mas acha a outra foto
bastante diferente de sua lembrança do tal pai. O grau de veracidade da imagem
é dada pela imagem de sua memória. Não há possibilidade, para Seo Chico, da memória
oscilar. A imagem é que altera, ora mais verdadeira, ora menos fiel à realidade.
Essa imagem não é prova de nada. É uma caixinha dentro da qual algumas lembranças
poderão ser resgatadas ou revitalizadas. Na reação à imagem do pai, um afeto íntimo,
apesar de acanhado, preenche o quadro. A foto pouco nos revela, mas propõe alguma
conexão para Seo Chico, que, ao reagir, revela algo dele pela foto. É
uma situação não distante da vista em O Prisioneiro da Grade de Ferro.
Na única seqüência com subjetividade expressa na imagem, aquela na qual a câmera
fica em uma cena durante uma noite, vemos fotos do habitante do cubículo. Registro
de momentos de lazer. Essas imagens são as únicas, em todo o filme, nas quais
temos a pré-prisão – um dado de liberdade, uma descriminalização da imagem, por
isso uma reconstrução de sentidos. Em um filme com o subtítulo de “Auto-Retratos”,
algo tão questionável quanto parcialmente verdadeiro, essa foto-retrato parece
ter mais de “auto”, no sentido de um registro de individualidade, que as imagens
registradas pelos detentos. Uma imagem rara em que o objeto se torna sujeito,
não porque empunha uma câmera, mas porque se coloca na própria imagem, mesmo com
outra imagem. Tanto nesse momento quanto no de Seo Chico as fotos são personalizações,
não uma informação ou a transmissão de algo, porque elas são importantes apenas
porque são importantes para os personagens, traços de suas construções e de suas
imagens. João Moreira Salles emprega de duas maneiras as
fotos em Nelson Freire e Santiago. No primeiro caso, mostra a relação
do músico com uma foto de Guiomar Novaes, por meio da qual renova as motivações
de uma vida na música, espécie de regressão com efeito de reciclagem, um instante
com alguma magia, não pela foto, mas pelo que ela provoca. É diferente a natureza
dessa reação quando o pianista vê na televisão imagens de um músico de jazz. Se
nesse momento, ao olhar para a tevê, ele assiste a um acontecimento, no caso uma
apresentação, olhar a foto de Guimar, em contrapartida, remete-o a sensações e
memórias, não a uma experiência de testemunho de alguma ação. A foto carrega algo
de mais íntima. Já em Santiago, quando inicia sua
aproximação com sua memória da infância e da casa dos pais, onde viveu também
o mordomo de mesmo nome do filme, o faz com uma foto, por meio de uma foto, pela
mediação de algo já morto, congelado, que mostra como foi, que se impõe como presença
do desaparecimento. Essa foto é pretexto para a retórica do diretor sobre suas
lembranças, é uma foto dispositivo, que abre as portas de um baú de memórias e
de reflexões, de perdas sobretudo, que preenchem o vazio daquela imagem fotográfica
inicial. A foto de Nelson Freire, guardadas diferenças
e contextos, conecta-se com as de Seo Chico, com as de O Prisioneiro
da Grade de Ferro (foto abaixo), porque revivem um passado, mas, ao mesmo
tempo, tornam esse passado distante, uma ausência, a presença de uma ausência
e não ausência preenchida pela imagem. As fotos de Santiago e de Diário
de Sintra, ao contrário, não são motivadoras de experiência, nem
registros de rastros do passado, mas dispositivos dramáticos, narrativos, que
empregam a imagem como motor estético, como elemento com o qual se constrói uma
estrutura, um relato, uma lógica de organização. São “fotos-pensamentos”, fotos
empregadas em um pensamento, expressões de um empenho expressivo. Nesse sentido,
a de Hércules 56, empregada em seu cartaz, por carregar tantos sentidos
e tanta espessura histórica, situa-se em outro lugar, não o da motivação de uma
cena ou de uma reação, mas o de concentração de um processo e de um contexto.
Se as fotos geradoras de experiências (Nelson Freire, O Prisioneiro
da Grade de Ferro e Seo Chico) são produtoras de memórias pessoais
para seus personagens e as fotos pensamentos (Santiago, Diário de Sintra)
são expressões das memórias para seus autores, a de Hércules 56 é a miniaturização
do macro para produzir um signo pregnante. Maio
de 2008editoria@revistacinetica.com.br
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