in loco - cobertura dos festivas
Ainda, os dispositivos por
Eduardo Valente A Gruta, de Felipe
Gontijo (Brasil, 2008) Piquenique (Pescuit Sportif), de Adrian Sitaru
(Romênia, 2008) Tiro na Cabeça (Tiro en la Cabeza), de
Jaime Rosales (Espanha, 2008)
É
fato mais que consumado que o mercado do cinema vive hoje um drama graças à super-população
nas telas do mundo. Nunca se produziu tantos filmes como hoje, em grande parte
pelo acesso às tecnologias digitais (mas não apenas). Quem vê os catálogos de
distribuidoras, produtoras e empresas que negociam direitos de filmes nos grandes
festivais internacionais percebe o desespero para chamar a atenção para um produto
em meio a uma infinidade de outros. Só que, enquanto no mercado mais forte as
moedas de troca são a presença de grandes estrelas ou superproduções com orçamentos,
efeitos e níveis de produção nunca vistos, no pequeno mercado de arte o diferencial
é buscado em outros níveis. E aí, ganha peso a figura do “filme-dispositivo”,
onde o que se propõe como grande atrativo e diferencial frente a uma miríade de
títulos é alguma sacada de linguagem (de preferência inédita), algo que o torne
único e não apenas “mais do mesmo”, e que empreste ao seu diretor automaticamente
a etiqueta de “inovador”.
O dispositivo como "o" filme Tomemos
o caso de Piquenique: o diretor Adrian Sitaru tem em mãos aqui um belo
roteiro baseado na complexidade das relações humanas, onde uma trama vai se urdindo
de maneira bem sutil a partir da maneira evoluem três personagens ao longo de
um dia. Poderia tratar-se de uma típica comédia de erros, manufaturada com considerável
inteligência de escritura e de atuação (em especial pela atriz que representa
o terceiro vértice do triângulo, uma prostituta que literalmente atravessa o caminho
do casal protagonista), que deve muito a uma longa tradição do teatro, numa trama
repleta de entradas e saídas de cena e frases resignificadas a cada novo andamento.
Só que a esta estrutura muito bem montada (e em si nada simples de ser bem realizada
como projeto), o diretor sente necessidade de adicionar um “algo a mais” na ordem
cinematográfica, e decide então dar o que considera o seu pulo do gato: todos
os planos do filme serão realizados com câmeras subjetivas, retratando em cada
um deles o ponto de vista de um dos personagens. É uma daquelas
idéias que soa muito boa, talvez, quando alguém a tenha em casa um dia, e que
ao contar para todos os amigos, eles dizem “isso seria genial”. O passo seguinte
é conseguir juntar todo o financiamento baseado no marketing de fazer algo
único e nunca visto na história do cinema, algo de considerável valor num mercado
a fim de “novidades”. E aí você tem que ir lá e fazer o filme de fato, quando
talvez descubra porque isso nunca foi feito antes:
porque é menos uma idéia brilhante do que uma camisa de força, onde uma questão
pré-filme (todo plano ser subjetivo) se sobrepõe ao que seria melhor para os personagens
e sua história, aquilo deveria movê-lo. O que resta é seguir à risca a proposta,
nem que para isso tenha que usar uma câmera de vídeo feíssima (e não falamos apenas
da qualidade da imagem, mas principalmente da sua articulação como linguagem)
e criar um jogo de montagem que, sob o peso da inovação, revela-se simplesmente
o menos adequado (além de o mais óbvio, o que talvez seja o mais grave) para dar
conta de uma história e três personagens cujo apelo possível vai sendo constantemente
tolhido pela ditadura da forma. Mas, não sejamos ingênuos: o resultado atende
o objetivo do projeto de vender-se como algo único e alça seu diretor à atenção
do circuito dos festivais internacionais, etc. Coitados apenas dos pobres personagens,
esquecidos à sombra deste projeto, e dos espectadores que tenham que tentar acompanhá-los
nessa viagem. Não é nada muito diferente do que acontece
em Tiro na Cabeça, do espanhol Jaime Rosales, cuja grande sacada foi a
seguinte: e se a gente filmasse durante uma hora e meia um personagem e seus encontros
com outras pessoas, mas retirássemos o som de todas as conversas que ele tem neste
ínterim, usando apenas o som ambiente do seu entorno? De novo, na sala de casa
(ou do escritório da produtora) é uma idéia brilhante, para a qual se consegue
financiamento a título de “inovação”. Mas, de novo, o que resta disso como projeto?
Quase nada, mas aqui o problema é de outra ordem do que em Piquenique,
e está mais no significado desta operação do que no resultado prático da mesma.
Isso
porque, ao retirar o som das conversas do seu protagonista, o único efeito conseguido
por Rosales é tornar a comunicação entre as pessoas uma abstração, o que praticamente
retira delas, afinal, a condição humana. Elas se tornam pouco mais que animais
observados a distância, não muito distintos de gnus e leopardos numa savana do
Discovery Channel. Esta até poderia ser uma afirmação política do diretor bastante
passível de discussão, só que há dois problemas: o primeiro é que ele não é fiel
à distância desta observação nem da lógica de sua montagem, e logo fica claro
que interessa menos a ele uma animalização do que uma generalização. Seu personagem
não é um animal, é de fato um humano (daí porque importa filmar o amor, as amizades,
etc), só que é um humano que não conseguimos distinguir de nenhum de nós ao longo
do filme, já que não entendemos suas particularidades pelos diálogos. Rosales
pareceria propor assim uma abstração de personagem a partir de um corpo humano,
o que até poderia render aproximações com determinado cinema experimental de algum
interesse. Só
que esta aparente identificação pela banalidade (trata-se de “um homem como outro
qualquer”) que o filme propõe só revelará suas verdadeiras tintas quando ele caminha
para o desfecho que justifica seu título. E aí, seu significado muda completamente,
e aquele que parecia se desenhar ao longo de sua duração como um exercício em
forma cinematográfica, torna-se uma afirmação política: de longe (e não de perto),
qualquer um pode se revelar um assassino. Ao fazer esta afirmação através do uso
de suas câmeras de vigilância, e deste jogo de roteiro que encaminha para a surpresa
final como o que dá sentido a tudo que veio antes, o que Rosales nos diz é que
o som em seu filme apenas foi retirado porque se ouvíssemos este homem no dia
a dia não haveria esta reviravolta final. Isso nos faz entender, então, que a
comunicação cotidiana de um assassino estaria contaminada o tempo todo por esta
tendência, e que o único jeito de nos identificarmos a ele no nível humano seria
tratando-o como um animal estranho e distante. Com isso, fica bem claro que o
filme propõe como efeito não qualquer tipo de identificação (“eu também poderia
ser um assassino”), mas sim uma política da paranóia (“um assassino pode morar
ao meu lado”) – o que, em última instância, só serve para justificar as políticas
de vigilância impostas por determinadas medidas estatais pelo mundo. Ou, talvez
isso seja ir longe demais, quando trata-se apenas de uma maneira de se diferenciar
de um oceano de filmes, não mais pelo que se deseja filmar, mas sim por como se
escolhe fazê-lo. O filme como "o" dispositivoCaso
semelhante, mas ao mesmo tempo completamente diferente, é o do brasileiro A
Gruta, de Felipe Gontijo. Porque ao mesmo tempo em que o filme deve toda sua
lógica a um artifício pré-formatado, neste caso não há nenhum tipo de escamoteamento
deste fato. Sim, porque está lá na tela nos créditos iniciais, com toda pompa:
trata-se não exatamente de um filme, mas de um filme-jogo, onde o espectador participa
a partir de escolhas feitas em determinados momentos que farão com que a narrativa
encaminhe-se em uma ou outra direção. Projeto que foi pensado a princípio para
ser visto/jogado em casa, em DVD, ele chega aos cinemas em sessões especiais por
esta opção do jogo coletivo ter sido vista como uma possibilidade, a posteriori.
Não
faz o menor sentido esperar de A Gruta algo que ele nunca se propôs a ser:
todo seu vocabulário, desde a maneira como se vende até a gramática audiovisual
que utiliza, compreende que na equação de soma filme+jogo, é na segunda parte
que está o foco da atenção, já que é dela que se retira a novidade da experiência,
pelo menos na sala do cinema (honestamente não consigo pensar como ver este filme
em casa possa ser interessante para quem jogue alguns dos mais desenvolvidos games
em primeira pessoa). O que não se pode negar é que uma sessão do filme consegue
mesmo reproduzir este sentimento de “novidade”, meio como deveria ser aquele dos
primórdios do cinema e que levaram os próprios Lumière a considerar que se tratava
de uma invenção sem futuro, puro divertissement. Porque a graça em ver
A Gruta num ambiente coletivo certamente vem muito menos de algo que está
na tela, e muito mais da partilha coletiva das escolhas, do lado lúdico mesmo
de como funciona a combinação hardware+software que cria a tal “interatividade”
entre espectador e tela. Ainda assim, é preciso que se diga,
mesmo que talvez como seja inerente a qualquer primeiro passo: A Gruta
tem muito de primário. A começar porque submete de tal forma o que está na tela
ao jogo que parece não se dar conta de quão toscos são seu arremedo de roteiro,
sua filmagem, sua direção de atores. Tudo no filme parece dizer que nada disso
importa, porque o legal será jogar, mas há considerável miopia nesta opção, pois
considera que o prazer do jogo não pode ser articulado também com algo bem feito
e pensado (algo que os games já deveriam ter nos ensinado ser falso). Claro
que há um assumido diálogo do projeto com um certo cinema Z, mas a falta de cuidado
com o material audiovisual é tanta que afeta a própria fruição do jogo: muitas
vezes as escolhas oferecidas ao espectador parecem não apenas arbitrárias (algo
natural e que, mesmo com o disfarce de “você tem as rédeas”, sabemos ser parte
do jogo – sem trocadilho), mas acima de tudo desimportantes. Não surgem em momentos
onde uma escolha pareça necessária, e muitas vezes levam a resultados tão enganadores
(uma cena de sexo prometida vira um fade-out, a escolha para uma ação desemboca
na outra negada) que vão levando o espectador-jogador a sentir um certo enfado
com o processo todo, perdendo um pouco a vontade de interagir, chegando a torcer
que o diretor tome algumas decisões logo – melhores, se possível. Por
sorte, porém, a duração parece precisa na sua rapidez, porque antes que o tédio
tome conta, o filme-jogo termina. E, ao contrário do que acontece com nossos “filmes-dispositivos
de arte”, a sensação que fica é de que, se não tivemos nenhum grande momento na
história da arte do cinema, pelo menos assistimos aquilo que esperávamos assistir,
e que nos engaja exatamente da maneira que nos propusemos. Não é nada, não é nada...
não é muito, mas já é algo. Outubro de 2009editoria@revistacinetica.com.br
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