eletrônica
O autor! O autor! - Futebol, imagem e autoria
por Eduardo Valente

Parte I: O diretor de imagens nas transmissões de futebol

Quem são as estrelas do espetáculo quando ligamos a TV para ver um jogo de futebol, como fazemos tantas e tantas vezes durante a Copa do Mundo? Certamente os jogadores, tendo como coadjuvantes os técnicos – que às vezes tentam roubar a cena, aliás.

Esta seria a resposta mais óbvia, e até correta. No entanto ela se refere ao evento futebolístico como um todo, não dando conta do aspecto televisivo que tentamos destacar na pergunta – seria como dizer que os atores são o que mais se destaca num filme, o que não definiria o cinema com mais detalhes do que o teatro. Se fôssemos mais adiante na questão da transmissão, sem dúvida os popstars seriam os locutores e comentaristas – hoje em dia são tantos que faz temer um colapso sócio-econômico ao final da Copa, tal o nível de desemprego a ser gerado. E, afinal, ame-se ou odeie-se Galvão Bueno, não dá para negar que ele é um dos principais fatores quando se escolhe este ou aquele canal para assistir os jogos. Mas, usando a mesma metáfora acima, não teremos nos distanciado muito de uma forma anterior de espetáculo – a radiofônica, matriz especialmente marcante (e de presença pleonástica constante) nas narrações à brasileira, e onde de fato é o locutor, e sua arte, quem nos faz “ver o jogo”.

Depois dos locutores e comentaristas, talvez fossem citados como estrelas os repórteres de campo, os adicionais de tecnologia (tira-teimas e estatísticas, entre outros), a quantidade de câmeras disponíveis, a qualidade da imagem, etc. Em nenhuma hipótese, porém, a direção de imagens seria um critério a ser destacado como um diferencial entre uma rede ou outra, ou como um aspecto a ser destacado no que confere um determinado “estilo” à transmissão esportiva. E, no entanto é ela que diferencia totalmente a experiência de ver um jogo num estádio (onde, de fato, cada espectador constrói o seu olhar sobre o espetáculo, e vê um jogo “diferente” do que é visto por todos os outros presentes), da de ver o jogo pela TV – sujeito a um determinado olhar que uniformiza ao máximo a experiência daquele espetáculo.

Se é fato que a “teoria do autor” nunca chegou a ser de todo incorporada pela TV no terreno da produção dramatúrgica (recentemente a Globo até deu um status a seus “diretores de núcleo”, mas no geral eles continuam abaixo dos autores das novelas – e o trabalho de direção no dia-a-dia do estúdio, este continua sem receber glamour algum), quando chegamos no futebol ela é fragorosamente ignorada. Seria impossível que qualquer espectador, mesmo o mais atento e informado, citasse o nome de um diretor de imagens de futebol, ou que pudesse escolher um “favorito”. E é curioso notar isso, uma vez que, de fato, as regras seguidas pela direção de imagem de uma transmissão de futebol são muito mais próximas do trabalho de um cineasta-autor do que costuma-se considerar – claro que um autor inserido nas regras de um sistema produtivo maior do que ele, mas isso não quer dizer nada, uma vez que a “política dos autores” surge justamente para defender a existência de diretores com estilo pessoal em meio a uma produção industrial (a hollywoodiana).

Dentro da tradição de análise fílmica tradicional, que separa o cinema entre ficção e não-ficção, é curioso notar que a transmissão futebolística se insere numa categoria mista. Se lida com um determinado evento que se desenrola em frente às câmeras para além do controle da equipe que o registra (neste sentido mais próxima da não-ficção), sua fruição pelo espectador está muito mais ligada ao instrumental de um espetáculo dramático mais típico da ficção – seja no uso das câmeras e seus movimentos (hoje cheios de gruas, carrinhos e até mesmo steadycams), seja na construção de discurso (que cada vez mais enfatiza personagens, plot points e usa constantemente, e com diferentes objetivos, o flashback - aqui conhecido como replay).

Dentro desta Copa, nós podemos citar momentos que exemplificam bem algumas das características citadas. Já no jogo de abertura, entre Alemanha e Costa Rica, a TV alemã (geradora de todas as imagens que vemos, e da articulação inicial entre elas – ainda que a Globo, por exemplo, faça uso de uma “câmera exclusiva” aqui e ali, a maioria das decisões que vemos são tomadas na Alemanha) demonstrava qual seria seu destaque “editorial” sobre a equipe nacional: quando seu goleiro titular (Lehmann) aparentemente falhou em dois gols do adversário, um corte nos levava a um close do reserva (e estrela do time em 2002), Oliver Khan, que assistia ao jogo do banco. Esta tentativa de antecipar um drama foi tomando proporções distintas na medida em que o time alemão (e seu goleiro) iam ganhando a confiança do torcedor, e nisso aconteceu uma mudança de papel inesperada: o herói nacional vitimizado (Khan) virou o vilão egoísta – no entanto, seja qual fosse o andamento, este drama nunca deixou de ser acompanhado pela direção de imagens.

Em grau menor, este é o mesmo artifício que várias vezes se usa para “propor” alterações aos treinadores: o jogo transcorre no seu tempo normal, e nos momentos de menos ação, busca-se planos fechados dos reservas mais “ilustres”, como que a sugerir possíveis injustiças dos treinadores ou focos de tensão nos elencos – nas oitavas de final foi especialmente marcante a tensão criada entre o treinador holandês Marco Van Basten e o artilheiro barrado Rudd Van Nistelrooy (tão mais pungente por se saber que Van Basten foi, ele mesmo, um dos maiores centroavantes da história holandesa). Quando depois de três alterações, a estrela do time não foi colocada em campo, estava escrito (pelo diretor de imagens) o roteiro principal da cobertura da imprensa sobre a eliminação holandesa.

A esta complexa combinação de registros herdados do cinema que o diretor de imagens de uma transmissão coloca em ação, adicione-se ainda o específico do seu meio: a transmissão ao vivo. Este elemento dá ao diretor a necessidade (e o poder) de comandar filmagem e montagem ao mesmo tempo – o que apenas aumenta a quantidade de talentos exigidos dele, e a dificuldade de entender porque eles são tão pouco reconhecidos. Afinal, é apenas lógico supor que há diretores de imagem melhores ou piores (mais ou menos talentosos, com mais ou menos conhecimento do jogo e da linguagem), e que eles mudam completamente a nossa capacidade de compreender e aproveitar a experiência de ver um jogo. No entanto, se este reconhecimento há, ele fica restrito aos corredores das redes de TV.

E é assim que estes ilustres desconhecidos, os diretores de imagem, são de fato os que “criam” a maior parte dos comentários que os “ilustrados” comentaristas e narradores farão sobre o jogo, quase sempre apenas seguindo as “dicas” passadas nos ângulos de câmera e cortes, quase sempre invisíveis – e levando toda a fama no final. Fato é que na transmissão de futebol pela TV não há nenhum prestígio em ser “autor”.

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