ensaios
Entre os rasgos da modernidade
Dias de Ira, de Carl Theodor Dreyer
por
Fábio Andrade
Não são muitos os paralelos cabíveis entre Carl Theodor Dreyer, cineasta austero de inclinação metafísica, e Kurt Vonnegut, o cínico veterano de guerra. Mas ao se ver um filme como Dias de Ira no cinema, um trecho específico de um livro de Vonnegut parecia abrir uma possível seara de compreensão - ainda que inconcreta - para a aura que emana de cada personagem em tela. Em Breakfast of Champions, Kurt Vonnegut conta a história de Kilgore Trout, um fracassado escritor de romances baratos de ficção científica que, ao final da vida, passa a ser reconhecido como uma espécie de profeta. Em dado momento do romance, Trout entra em um banheiro de um cinema vagabundo em Nova York e lê, em uma de suas paredes, a seguinte inscrição: "what is the purpose of life?". O escritor não responde à pergunta simplesmente por não ter um lápis ou caneta no bolso. Mas sua resposta seria:
"To be
the eyes
and ears
and conscience
of the Creator of the Universe,
you fool".
Quando
Dreyer filma um ator - seu rosto, sua presença física,
a maneira como cada frase é proferida, o tempo em que um
rosto sai da escuridão para os expressivos fachos de luz
da fotografia de Karl Andersson - ele não é apenas
um ator, mas "os olhos, os ouvidos e a consciência
do Criador do Universo". Esse efeito é menos um relato
de arbitrariedade esotérica, e mais uma percepção
de como cada personagem de Dreyer parece apenas dar corpo e voz
a valores que o transbordam. Com a devida dimensão de uma
tela de cinema, é nítido o quanto essas presenças
são construídas de maneira a representar muito mais
do que apenas uma afirmação física, mas a
encarnação de algo tão fundamental quanto
o conceito de divindidade. A arte como clareira metafísica
não se configura necessariamente por uma ótica beata,
mas sem dúvida como uma propensão religiosa comum
a vários dos maiores cineastas, seja pela impenetrabilidade
das máscaras de Robert Bresson, a transmutabilidade incessante
dos espíritos em Apichatpong Weerasethakul, a dignidade
inalienável dos heróis e bandidos de John Ford,
ou a resignação harmônica do tao
em Yasujiro Ozu. Em todos os casos, a matéria é
moldada pelos diretores, que rasgam em sua superfície pequenas
fissuras que deixam transparecer, lá no fundo, a presença
de Deus. E do Diabo.
Em uma cena de Dias de Ira, pouco depois de Martin (Preben Ledorff Rye, o mesmo ator que faz o messias em Ordet) e sua madrasta Anne (Lisbeth Movin) se confirmarem como um trágico par romântico, o casal olha para uma árvore que se dobra sobre um riacho. Ele diz se tratar de uma árvore envergada pelo luto por toda a humanidade; ela vê apenas uma árvore que entortou por se sentir atraída pela beleza de seu próprio reflexo. Em Dias de Ira, todo plano carrega essa potência igualmente divina e diabólica, capaz de ir do céu ao inferno com uma simples mudança de luz, ou mesmo de manter sua ambiguidade à mercê do olhar de cada espectador. Toda mulher pode ser santa ou bruxa; todo homem pode ser um herói ou um algoz. Não à toa, o filme foge da estrutura diametral de plano/contraplano, substituindo-a em grande medida pelo plano-sequência, ou por planos/contraplanos descentralizados, descompensados em sua relação, desmontando a segurança moral do eixo dos olhares.
A
preservação dessa ambiguidade é essencial
para o cinema de Dreyer, pois ela o situa como um diretor frontalmente
político. Assim como o milagre ao fim de Ordet
nos chama à responsabilidade, em Dias de Ira somos
jogados em uma bestial inquisição para, em pouco
tempo, vermos concretizados os motivos que transformam as mulheres
em bruxas. A maneira como cada personagem assume prontamente suas
responsabilidades faz uma inversão essencial: depois de
condenarmos intimamente a barbárie e nos compadecermos
pelo passado opressor sofrido pela protagonista, seremos capazes
de chamá-la de bruxa? Ela é apenas uma mulher em
busca de amor, ou também uma assassina confessa? Mesmo
que, à razão dos nossos olhos, o assassinato nos
pareça no mínimo fantástico, senão
absurdo, a índole de quem acredita ter provocado conscientemente
um assassinato é diversa da de quem crava a faca? Imaginar
"e se..." é diferente de desejar?
As personagens de Dreyer olham diretamente para a câmera
e para o espectador, pedindo uma tomada de posição
à medida em que, reconhecidamente, elas também nos
julgam: quem você acha que eu sou? O cinema de Dreyer, porém,
não se ergue nesses questionamentos. Não há
nada de duvidoso em seus filmes: todos se amam e se matam preenchidos
integralmente pela certeza de suas convicções. Mas
ele faz com que essas perguntas escorreguem pelas bordas, aparecendo
pelos rasgos da máscara como os olhos de Deus. É
nesse sentido que sua relação com o clássico
se mostra essencial para o cinema moderno. Dreyer retoma, é
verdade, uma série de convenções da pictorialidade
renascentista: a composição dos planos; o posicionamento
jansenista de cada cabeça no enquadramento; a austeridade
de uma construção em sussurros e olhares para o
além; o temor que se esconde por trás do brilho
de cada retina. Mas onde na pintura há fixidez e certeza,
no cinema há a possibilidade de mobilidade, de se abrir
a cena como se desdobra um tabuleiro.
Nesse
sentido, Dias de Ira é uma mudança decisiva
em relação à fase silenciosa do diretor,
em que a atração dos ícones religiosos provocava
um choque entre planos sempre centrípedos, de cujo confinamento
não se podia fugir. Em Dias de Ira - como em Ordet
e Gertrud - Dreyer parte da composição
renascentista perfeita para travellings ou panorâmicas
que redefinem o entorno do ícone, fazendo campo do extracampo
da cena, e maleabilizando o seu significado. Um sujeito que olha
para o nada logo se transformará na testemunha de uma cena
de tortura, assim como os gritos fora de quadro serão surpreendidos
pela chegada atrasada da câmera, quando a tortura já
terminou e a torturada já aparece solta. A isso, Dreyer
soma o cuidado de compor o quadro não só para o
começo e o final de cada movimento, mas também para
todos os estágios intermediários, como se cada instante
qualquer pudesse ser, também, escolhido como instante pregnante.
O que poderíamos dizer sobre uma cena de tortura se, em
vez de recortar o torturador ou o torturado, um artista tomasse
como índice mais expressivo o espaço vazio que os
separa?
A visão por entre os rasgos é sempre parcial e marcada pelos desejos de quem olha. Anne borda uma tela tendo como referência um desenho de uma mãe de mãos dadas com uma criança. Pela tela, ela vê Martin, seu novo "filho" e futuro amante, e pára o bordado no meio, ignorando o molde que lhe foi pré-definido, interrompendo o espelhamento em ato de inegável autonomia: sem bordar a criança, aquela personagem não é mais uma mãe, mas uma mulher independente e solteira, liberta do entorno que a definia como mãe. De certa forma, o que faz do cinema de Dreyer algo ainda hoje tão impressionante é a maneira como ele transforma tudo que filma em esfinge, conferindo uma autonomia irrestrita e surpreendente a tudo que põe diante da câmera, filmando tanto um torturador quanto um torturado com a mesma carga enigmática que envolve o espaço que os separa. E sim, é claro que Anne é uma santa, mas não vês que ela é também uma bruxa? Dreyer faz, com isso, um cinema que é igualmente íntegro e perverso, capaz de transformar um duplo adultério em uma das mais belas cenas de amor do cinema, pelas frestas de dignidade de um arbusto. Assim como os rasgos que dão acesso aos olhos, aos ouvidos e à consciência do Criador do Universo - seja ele Deus ou o diabo - por entre os galhos vemos uma bruxa se deitar com o próprio enteado... e vemos um casal em momento puro de felicidade e amor.
Agosto de 2011
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