ensaios
Paisagens afetivas - Diários
de David Perlov
por Ilana Feldman e Cléber Eduardo
Através da janela do apartamento de sua filha
Yael, em Paris, David Perlov observa um grupo de crianças e uma
sucessão de pés caminhando. Vemos nessas imagens do quinto capítulo
dos Diários de David Perlov (Diary, 1973 - 1983)
uma beleza simples, cotidiana, revelada por enquadramentos livres
e seletivos, que são o princípio formal das seis partes desse
memorialístico e metalingüístico caderno de notas audiovisual.
Enquanto crianças de diferentes origens brincam em um pátio e,
por atrás delas, na rua, pés movimentam-se com pressa ou elegância,
no plano da narração, Perlov postula seu manifesto estético: um
cinema sem trama, sem intrigas, calcado na observação dos espaços,
públicos e privados, na observação do movimento de corpos como
fluxos no tempo, na captação de fragmentos do cotidiano, de pequenos
gestos e expressões de rostos anônimos - situações ou instantes
cuja riqueza está tanto nas experiências apreendidas quanto no
modo de se olhar para elas.
Pode-se dizer que o cinema prenunciado nos Diários
de David Perlov, revelado à boa parte dos brasileiros com
sua exibição nos festivais deste ano, foi um dos grandes destaques
da programação destes – tendo ganho, inclusive, exatamente esta
menção no Prêmio da Crítica Independente. Este cinema, que reivindica
para o ordinário uma estética que lhe seja própria, começou a
ser filmado em 1973 e terminou em 1983, tendo sido organizado
durante a montagem em seis capítulos de 55 minutos. No início,
usando uma câmera em 16mm, tratava-se de uma experiência sem finalidade
específica. Somente quando se tornou série de TV, veiculada pelo
Channel 4 inglês, Perlov colocou a narração, construindo, posteriormente
à captação, uma memória para as imagens, ou para as suas “anotações”
visuais. Assim, Perlov fazia dos Diários não apenas um
potente espaço de construção e atualização da memória, mas também
um território propício à reflexão – muitas vezes sobre sua própria
metodologia documental.
Este é o segundo turno da obra de David Perlov
(1930-2003), um judeu brasileiro, natural do Rio de Janeiro, criado
em Belo Horizonte e São Paulo, cidadão de Israel – e referência
maiúscula no documentário desse país escolhido como lar. O primeiro
turno foi marcado por trabalhos pouco apreciados pelo status
quo israelense, com destaque para In Jerusalém (1963),
documentário de 33 minutos, em que Perlov filmou mendigos de Tel
Aviv, grupo social no seio do qual, segundo uma poetisa ouvida
pelo filme, nasceria o Messias. Apesar de ter sido premiado no
Festival de Veneza de 1963, e ser considerado um marco do cinema
israelense, o filme teve como conseqüência o isolamento de Perlov
pelas autoridades políticas de seu país. Perlov buscava liberdade
estética e política em um momento histórico pontuado por legislações
e autoridades pouco flexíveis em Israel, que reivindicavam projetos
cinematográficos de propaganda ideológica e não valorizavam experiências
formais empenhadas em dar espaço ao humano.
Segundo sua esposa, Mira Perlov, também produtora
dos Diários (e que esteve no Brasil acompanhando a exibição
dos trabalhos), Perlov “queria fazer filmes sobre pessoas, enquanto
eles [o status quo israelense] queriam filmes sobre idéias”.
Da Europa e da América do Sul, continentes com os quais o diretor
tinha contatos próximos, as experiências e idéias, no campo da
imagem, estavam a fervilhar – a Nouvelle Vague, os cinemas
novos, Jean Rouch, o cinema direto norte-americano. Filiado a
esta modernidade estética e sob a influência seminal do documentário
poético de Joris Ivens (de quem Perlov foi assistente), Diários
é também fruto de uma crise com as convenções da ficção e do documentário,
quase um misto de experiências que vinham sendo praticadas nos
anos 60. Assim, ao mesmo tempo em que o filme incorpora a consciência
de quem é filmado – como no cinéma verité francês -, também
se apóia no método observacional de não-interferência do cinema-direto
norte-americano. De todo modo, nos Diários parece haver
ainda um retorno às origens, às de Perlov e às do cinema –
como as cenas de rua e de família captadas pelos irmãos Lumière.
Some-se a essas referências estéticas e
estilísticas a presença constante da narração em off, não
como voz de um saber onisciente e teleológico, mas como voz subjetiva
do autor-narrador expressa em primeira pessoa. A voz de Perlov
que tudo narra, não para reiterar imagens ou totalizar o sentido
das experiências, mas para buscá-lo incessantemente. Perlov desenvolve
um projeto estético no qual a narração não está comprometida com uma verdade
de “quem se é”, mas com a própria materialidade sonora das
palavras, materialidade que contempla a entonação, a estrutura
das sentenças e uma rítmica oral em sintonia com o movimento dos
planos e, sobretudo, com o movimento no “interior” dos planos.
Dessa forma, sua narração
deixa de apenas contextualizar os
momentos da filmagem para ver nestes momentos pontes com sentimentos
e sensações que habitam seu passado.
Há, assim, uma paradoxal relação entre imagem e memória, pois,
ao mesmo tempo em que as imagens, captadas durante a filmagem,
evocam memórias, essas mesmas memórias são também produzidas pela
articulação das imagens na montagem.
Portanto, não se trata de um projeto proustiano,
marcado pela memória involuntária. Em Diários, a procura
da madeleine perdida é consciente, almejada e requerida.
Também não se trata de um projeto de documentário que se instala
na duração temporal, já que sua narração não é contemporânea à
captação das imagens. Perlov, de modo diverso, trabalha na lógica
do fluxo, evocando e construindo memórias a partir da fragmentação
do tempo, dos espaços e das experiências, embora essas experiências
estejam organizadas de forma cronológica.
Há uma busca empreendida, e constantemente assumida,
em Os Diários. De início, não sabemos ao certo o que se
está a buscar, embora, pela insistência da voz de Perlov em ver
algumas imagens como presságios, possamos intuir que essa busca
é por algum tipo de revelação. Como quem perscruta os confins
da memória à procura de um rosto perdido, de um sorriso doce,
de um grito surdo e da música da infância (no caso, uma Ária de
Bach), Perlov busca uma imagem capaz de nos evidenciar algo só
possível de ser apreendido pela sempre atenta câmera-olho do cineasta
e só possível de ser captado pela tecnologia do cinema.
Logo
no início de sua quase onipresente voz off, Perlov explicita
sua aversão a artifícios construtores de sentido, propondo um
caminho não-ficcional para a “revelação” buscada pelos Diários.
Haveria assim algum segredo na imagem, alguma epifania, aparentemente
invisível, a ser revelada. Tal epifania só poderia ser flagrada
sem roteiro prévio ou encenação, apenas com a observação insistente
dos pormenores da vida. Judeu laico, Perlov, em diversos momentos
dos Diários, evidencia uma relação religiosa com a capacidade
de revelação da imagem, ao reter instantes e ao produzir memória
– visão que nos remete a André Bazin, defensor de um cinema vocacionado
a sacralizar o ordinário.
No sexto e último capítulo dos Diários,
Perlov nos diz que, desde a infância, é um admirador dos enquadramentos
proporcionados pelas janelas do trem que ligava Belo Horizonte
a São Paulo, enquanto retém seu olhar em uma janela de um vagão
da Estação da Luz, evocando, talvez, a gênese de sua trajetória
– que não está longe da imagem-gênese da exibição cinematográfica
(o trem dos Lumière). A partir de então, ele olha e enquadra por
janelas de bondes, de automóveis e dos apartamentos por que passa.
Nesses momentos, temos dois quadros, o do visor da câmera e o
da janela, através dos quais o cineasta observa o movimento do
mundo, mas sem com isso lhe conferir nenhum sentido prévio, nenhuma
finalidade – espécie de testemunha do acaso. Perlov afirma, a
partir da imagem das pernas de um homem correndo, que só importa
o movimento do homem que corre, e não de onde ele vem ou para
onde está indo. “A observação é parte do meu ser”, enfatiza.
No entanto, quando mira de suas janelas, Perlov,
longe de se abrir inteiramente ao acaso, procura o extraordinário
de uma imagem qualquer, não o ordinário de qualquer imagem. As
janelas são ainda uma forma de propor a convivência entre a vida
de dentro (o cotidiano em movimento da família) e a de fora (o
movimento diversamente repetitivo da rua). Esta relação também
se estabelece com o uso de um mesmo som ambiente de cidade, ruidoso
e carregado de buzinas, em ambientes domésticos. Porém, quando
filma em Israel, seja de dentro de seu apartamento ou fora dele,
salienta que esta convivência entre interioridade e exterioridade
assenta-se sobre uma espécie de relação dicotômica. A família
e os amigos são sempre filmados em situações de harmonia, em uma
espécie de utopia das relações afetivas, enquanto o país, quando
mencionado e visualizado, carrega o peso de uma expectativa frustrada.
O lar é, assim, o refúgio da distopia nacional. E mulher e filhas
são, nesse contexto, seu povo primeiro.
No primeiro capítulo dos Diários, a guerra
de Yom Kippur, depois de algumas imagens de protesto captadas
pela janela, nos chega pela televisão (uma outra janela explorada
por Perlov nos dois primeiros capítulos). Essas imagens da guerra
semeiam a incerteza em um espaço de segurança. Neste caso, há
uma fusão pela TV da relação dentro/fora. Já nos capítulos subseqüentes
(três e quatro, sobretudo), essa relação torna a ser de complementaridade
e de oposição. A terceira parte dos Diários traz algumas
das mais belas imagens da série, primeiro com a dança dos amigos
na despojada sala de estar do apartamento dos Perlov em Tel Aviv,
depois com a filha Naomi aprendendo francês com o namorado em
Paris. Ambas as cenas são realmente fortes enquanto captação de
um momento íntimo, intimidade que emerge a partir da mediação
da câmera e em reação a ela. A câmera de Perlov, através da qual expressa seu amor
homenageando família e amigos, procura filmá-los de um modo poético
e terno, estabelecendo uma relação afetiva não só com os seus,
mas com paisagens, imagens e lembranças que o cercam, mesmo as
mais duras e tristes.
Quanto ao seu método de aproximação, sua
câmera ora é indiscreta, roubando imagens sem pedir licença, ora
é uma câmera com pudor, fazendo questão de demonstrar sua presença,
de solicitar uma performance qualquer (e não qualquer performance),
na qual os filmados têm consciência de estarem em quadro e reagem
a essa consciência. Nesse sentido, a construção de uma intimidade
familiar proposta pelos Diários não se dá, de modo algum,
na exploração intimizante e intimidante que o termo “primeira
pessoa” vem assumindo, seja em documentários (como Tarnation,
TV Junkie ou Le filmeur) ou em toda sorte de dispositivos
tecnológicos confessionais (como blogs, fotologs
e webcams). Esses dez anos da vida de David Perlov não
nos são, assim, apresentados a partir de um prisma confessional,
que faz da capitalização das questões do “eu” sua matéria primordial.
De modo contrário, sua trajetória biográfica nos é revelada aos
fragmentos e sua subjetividade emerge não de uma interioridade
essencial, mas da observação da exterioridade do mundo, como seus
ritmos, movimentos, permanências e mudanças. Isto é, é somente a partir de sua observação do mundo que
seu “estar no mundo” pode ser captado, revelado e amalgamado.
Os seis capítulos dos Diários são, portanto,
marcados por uma jornada em constante andamento, e esta jornada
tanto diz respeito à questões pessoais da trajetória de Perlov
como a sua metodologia de trabalho audiovisual em desenvolvimento.
A questão pessoal está diretamente ligada, no sexto capítulo,
ao passado e a uma ausência: quando retorna ao Brasil, reencontrando
amigos, revisitando paisagens afetivas de São Paulo e ouvindo
novamente a Ária de Bach de sua juventude, Perlov parece próximo,
pela estrutura optada, de encontrar algo. Seria uma imagem perdida
da infância? A tensão com a proximidade de Belo Horizonte, cidade
carregada de tristes lembranças, de onde saiu ainda criança, é
amplificada com a menção à mãe, Ana, figura pouco evocada e envolta
em brumas, da qual prefere não falar. E é só depois de visitar
o túmulo dela, ainda em Belo Horizonte, que Perlov pode, enfim,
voltar para casa, Israel, a casa escolhida – não sem antes passar
por Lisboa, onde, enquanto nos presenteia com lindas imagens de
pés e pernas entrando e saindo de um bonde, preenche a banda sonora
com a Ave Maria tocada no rádio da cidade, reverenciando algumas
das mulheres importantes em sua existência.
Reaprender a enxergar – e posteriormente
estruturar o que se enxergou na filmagem – é o desafio de Perlov.
Se aceitarmos seu convite, de modo a tentarmos também encontrar
a revelação por ele buscada, cada fragmento tende a ser um acontecimento,
uma grande imagem em potencial, e não apenas o registro de experiências
triviais. Cada imagem passa a ser, assim, parte de uma busca romântica,
quase metafísica, pelo invisível da visão, imagem invulgar do
simultaneamente simples e complexo movimento da vida. E ver essas
imagens, articuladas por uma montagem rítmica e narradas pela
voz melódica de Perlov, tem algo de ritualístico – e, portanto,
de sagrado – no sentido de compartilharmos a memória de sua busca
e a memória construída por essa busca. No entanto, não se trata
apenas de uma experiência audiovisual amalgamada pela poesia cara
aos gestos memorialísticos. Antes, Os Diários de David Perlov
situam-se no território da militância estética, já que ao olharem
para o passado do diretor, encaram o futuro do documentário.
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