diário da redação
O realismo nas séries de TV e no cinema
edição de Eduardo Valente

Alguns termos "assombram" a teoria e a crítica de cinema. Foi o que pudemos ver na lista da revista, assim que surgiu uma singela pergunta da Ilana sobre o realismo nas séries de TV atualmente exibidas. Foi só puxar a questão, que o novelo desandou a desenrolar...

* * *

De Ilana Feldman, 11/09/2006, 14:22

alguém que acompanha as séries de TV saberia me dizer se está havendo, proporcionalmente, uma tendência de mercado apoiada no realismo da imagem? digo da imagem, pq. não vale o realismo da palavra, como sitcoms...

grata!


Cléber Eduardo, 11/09/2006, 14:40

The Office parece ser bem realista: um dia a dia de escritório registrado pela lente de um documentário que lá está como um reality show com a câmera móvel e com a equipe de observadores deixando-se ver. Mas só vi duas vezes...


Leonardo Mecchi, 11/09/2006, 15:42

Não sei se entendi exatamente o que vc quer dizer por "realismo da imagem", mas vejo a busca desse realismo também em 24 Horas e em séries policiais como The Shield.

Mas não sei se proporcionalmente há uma preocupação maior com isso, já que outras série de sucesso como CSI e The West Wing possuem uma certa estilização da imagem, principalmente através da fotografia.

Abraços,
Leo Mecchi


De Ilana, 11/09/2006, 16:14

Mas, essa estilização da imagem é produzida a partir das atuais convenções realistas? tipo, câmera na mão, instabilidade na captação, cortes abruptos, cores levemente retiradas, às vezes textura granulada...


De Cezar Migliorin, 11/09/2006, 16:26
Ilana.
Acho que realistas essas séries todas são (The Shield eu não conheço). Realistas, no sentido em que são fundadas na ação, mas o realismo em si não é normativo.
Talvez valesse pensar quais são as regras do realismo contemporâneo na TV. Acho que a estratégia do game, por exemplo, é um realismo contemporâneo. - estou aqui me lembrando de dois filmes do Gus Van Saint, Elefante e Gerry. No Gerry, me lembrou meu amigo André Brasil, há uma constante mudança de cenários como se estivéssemos em um game, mudando de fase.
O 24 Horas também, não? Os dias aparecem mais como fases a serem ultrapassadas do que como um marca temporal.
Sem querer viajar muito, acho que o realismo é muito mais um regime móvel de visibilidade do que uma maneira de fazer.
abs
Cezar


De Cléber, 11/09/2006, 16:44

o realismo da imagem é historicamente móvel e, em cada momento, mesmo não sendo o tempo todo normativo (o de Bazin e Zavatini era sim), acaba se fazendo realista por determinadas convenções de cada época.
Já foi o preto e branco, hoje é o acinzentado-esverdeado. Já foi a quase transparência de câmera e de cortes, hoje pressupõe a câmera-reportagem e as elipses abruptas, já foi a experiência individual como sintoma de seu contexto social e histórico, hoje valoriza a experiência fenomenológica não reduzida a um sinal simbólico de seu mundo, já foi uma interpretação do conjunto das experiências mostradas, hoje persegue com maior ênfase a experiência em si mesma. Portanto, haverá sempre porções diferentes de realismo, dependendo do que estamos reivindicando como realismo.

A questão menos enroscada ai, mas só para se enroscar, é pensar o que seria o "não-realismo" na imagem, comparar esse padrão de realismo de TV de hoje com os dos anos 80, por exemplo (Gata e Rato, McGiver, Os Gatões). A relação com os espaços, sobretudo, é fundamental nisso. 24 Horas, certamente.


De Diego Assunção, 11/09/2006, 17:02

> mas essa estilização da imagem é produzida a partir das atuais convenções realistas? tipo, câmera na mão, instabilidade na captação, cortes abruptos, cores levemente retiradas, às vezes textura granulada...

24 Horas: na terceira temporada tem até o uso indiscriminado de filtros para dar aquela impressão de "realidade" aos moldes do filme Traffic. Se não me engano são usados uns filtros avermelhados nas cenas passadas no fronteira mexicana, quando a narrativa se centra na relação do Jack Bauer, infiltrado, com os traficantes.

Acho que esses recursos realistas citados funcionam muito bem nas duas primeiras temporadas, em que a série, com seu "espírito mctierniano", consegue fazer o uso com grande sucesso de certas polêmicas, ou escândalos, da política americana dramaturgicamente - indo em linha oposta, ou seja, sendo bem sucedido, ao contrário da gritaria e planfetarismo contidos nos filmes do Michael Moore, por exemplo.

A partir da terceira temporada (acompanhei a quarta e alguns episódios dessa última) a série meio que virou um pastiche de si mesma.


De Cezar, 11/09/2006. 17:36
Acho que a questão é boa: o que seria o não realismo?
O realismo me parece ser uma forma ativa - a ação de um realizador que se expressa na fotografia, montagem etc - sobre uma forma passiva - o mundo narrado do Jack Bauer, dos traficantes, etc.
O não-realismo é uma apreensão ativa do que é narrado. O realizador não age mais na construção da imagem do que o próprio objeto captado.
Mas, pensando bem, isso tudo não implica um não-realismo, mas apenas uma ruptura com o realismo e a entrada da imagem em relação com outras imagens. Na ruptura com o realismo imagino que a obra perde uma lógica interna que o sustenta. As imagens se tornam dependentes de outras imagens, textos, etc, que estão fora da obra.
abs
Cezar


De Diego Assunção, 11/09/2006, 17:38

Eu acho essa questão "realismo" na televisão, no cinema também, bem enroscada - pra usar um termo colocado pelo Cléber. Dos artifícios citados pela Ilana, a série 24 Horas usa e abusa deles, mas não deixei claro no primeiro e-mail que isso, para mim, não faz da série "realista" (até porque seria ignorar as características mctiernianas dela, sua característica lúdica). Só acho que é muito mais interessante a visão da realidade norte-americana contemporânea na série do que nos documentários mambembes do Moore.


De Cezar, 11/09/2006, 17:59
Botando lenha: acho que o Moore encara o desafio de tocar no que é consenso nesta "realidade americana". Acho que você tem total razão em dizer que a visão das séries sobre a realidade é mais interessante.Elas se confundem com a realidade, não é isso? A realidade não é um imaginário que se tem sobre alguma coisa misturado com a maneira que a gente vive a coisa?
abs
c.


De Ilana, 11/09/2006, 17:43

obrigada a todos pelas respostas. realmente, o realismo tem sido pra mim um caroço de azeitona...

entre a sujeira da imagem ou a assepsia do hiper-real, o terreno é pantanoso. concordo que o realismo não seja normativo no sentido de que é pura mutação. mas, ao mesmo tempo, como um modo de aproximação da vida, é pautado por convenções estético-estilísticas que, ao fim e ao cabo, têm como efeito a naturalização da percepção. e, neste ponto, tudo se complica ainda mais. pois, se o realismo é da ordem da aproximação - e não do conteúdo da imagem -, um fã de Senhor dos Anéis pode alegar que se trata de uma série realista...


De Diego Assunção, 11/09/2006, 18:14

Cezar,

Tem um episódio que ilustra bem certas questões que uma série como a 24 Horas lança. Nesse episódio uma mulher que trabalha no comitê do Palmer (isso é na primeira temporada) tem um caso com um dos caras que pretende matá-lo. Bauer e sua equipe descobre isso e armam um plano para pegá-lo, fazendo ela encenar um encontro casual com ele. Nessa encenação várias câmeras de vigilância são colocadas e o plano acaba dando errado (bem, nesse ponto fica claro que a série coloca em xeque seu próprio universo, seu realismo e suas representações).

Na segunda temporada tem uma cena mais forte, a da tortura do filho de um terrorista mostrada por um vídeo. Essa tortura, que é feita para aliciar o terrorista a revelar seu plano, é uma encenação também (porém bem "realista", chocante até).


De Lila Foster, 11/09/2006, 19:58

Ilana,
Acho que é este o ponto e o nó do realismo, mais do que tudo ele é um artifício retórico, "acreditem no que estão vendo". O que eu acho impressionante é que quanto mais se manipula ou, o quanto mais essa manipulação se torna transparente, mais realista fica
na sua recepção. É um caroço de azeitona mesmo...


De Fernando Veríssimo, 12/09/2006, 0:23

Michael Mann em Miami Vice, a série, foi pioneiro na série policial "realista". até os terno Armani e as Ferrari Testarossa eram realistas -- documentavam não um estilo, mas a realidade dos policiais que se valeram de uma lei que permitia que usassem material apreendido dos barões do tráfico em suas operações undercover. O filme coloca mais uma vez questões de representação, etc. é uma disputa saudável com as séries.

Não acompanho, vale dizer, mas tentei ver o 24 horas, que me deu engulhos. Como me dá o termo "realismo", aplicado ao cinema.

fv


De Cezar, 12/09/2006, 10:45
Veríssimo

Qual seu problema com o vínculo cinema-realismo? Princípios bazanianos ou anti-bazanianos. O cinema é sempre realista, por ser "quase" sempre o documentário dos acontecimentos filmados, ou é sempre não realista, por estar moldando o que for para afirmar uma visão (não se apreende coisa nenhuma, se reproduz ou se encena).

Apenas jogar fora a categoria acho fácil, sobretudo porque, como você mesmo afirma, Miami Vice tinha um quê de realista, sim, mas era um realismo dos anos 80, ou seja, para cada olhada para os realismos anteriores (e não há como não partir de algum ponto deles), criava-se uma sabotagem para esse mesmo realismo. Realista porque os acontecimentos são derivados de acontecimentos plausíveis, porque se tem uma aproximação dos personagens como seres e não apenas como ícones, mas a organização sonora e visual trazia para esse realismo uma série de alterações da imagem e dos sons (as câmera lentas, a música como parte integrante da sequência, como se estivesse tocando em um auto-falante no espaço filmado), a dissonância mesmo entre um tiroteiro e uma canção de Cindy Lauper.

De Fernando Veríssimo, 13/09/2006, 0:53

Meu problema não é com o vínculo, mas com o termo. É preciso definir e redefinir a cada uso -- é o mais violentado de todos.

Quando falamos em "realismo", em geral é um vale tudo! vê aí: 24, Rosselini, Senhor dos Anéis, Miami Vice!!!


De Ilana, 13/09/2006, 01:21

Eu cá acho que os maiores estupros conceituais acometem um outro termo: "representação". Mas, vá lá. não há nada mais retrógrado e "caduco" (me apropriando de um adjetivo contracampista) do que "representação".

Tem mais é que ser revirada do avesso a coitada.


De Cezar, 13/09/2006, 05:50

Oi Ilana,
Estava aqui me segurando para colocar o termo na roda, mas já que apareceu...

Acho que estamos frequentemente falando de representação quando falamos de realismo.
Não sei se o termo é retrógrado ou caduco não. Acho que ele é difícil pois frequentemente pressupõe uma dicotomia da imagem - ou representa ou não representa, como se fosse instâncias fechadas. Não são. Representar é uma certa relação com um objeto.

Olha essa passagem do Rancière: "Uma arte anti-representativa não e uma arte que não representa mais. É uma arte que não tem mais limite nas escolhas do representável nem dos meios de representação"

O embate dele é para que certos temas não sejam eleitos como irrepresentáveis, como se nenhuma imagem podesse ser feita sobre a Shoah, por exemplo. Nem que se espere imagens-totais, imagens que dariam conta da totalidade do evento, algo que só seria possível fazendo apelo a uma imagem do sublime.

Representar seria se relacionar com um objeto de maneira incompleta, parcial.
Desculpe a todos se me estendo demais nessa história
abs
Cezar


De Diego Assunção, 13/09/2006, 09:09

Eu acho bem complicado o uso de certos termos, que podem parecer redutores ou criar mal-entendido - isso vale para "realismo" e "representação", mas vale também para outros como "cinema clássico", "cinema moderno".

Bem, o que quis dizer (e não sei se ficou claro) é que a série 24 Horas, pelas cenas citadas, lança um olhar questionador sobre certas imagens que convencionaram-se "realistas" (videos de depoimento de terroristas, e também os cacoetes da série - a tal câmera trepidante, os cortes bruscos, etc.), imagens essas que representam um "padrão" de realismo que nos acostumamos a ver nos "filmes documentais" de Paul Greengrass, nos telejornais, séries, enfim...


De Ilana, 14/09/2006, 17:23

Cezar,
Essa citação do Rancière foi donde?

Sendo breve, mais do que gostaria, acho que a questão da representação  - concordando com tuas colocações - é mais do que uma forma imparcial de se relacinar como o objeto. É, antes, um modo de pensamento, uma tradição intelectual hegemônica, que pensa "representacionalmente", isto é, a partir da imobilidade, da fixação, das instâncias fechadas em-si mesmas, fixadas, localizáveis e determináveis. E, ainda, a representação aparta sujeito e objeto, partindo do pressuposto de que haveria sempre um referente.

Bom, falo muito intuitivamente, mas,  a representação me parece que, contraditoriamente, carrega o desprezo socrático-platônico por tudo o que não é a Idéia, estando a representação sempre no terreno da falsificação, da desrealização. O que para mim não é muito estimulante.

No meu entender, o pensamento sobre a imagem deveria filiar-se não à tradição socrático-platônica, mas àquela, não hegemônica, que sempre pensou o movimento, a plasticidade, a não-fixação, a não-identidade e a não-separação entre sujeito e objeto. Deleuze tentou fazer isso. De certo modo, o Jonathan Crary também. Talvez os conceitos - já que a questão é conceital - de "atualização" em Bergson ou mesmo de "simulação" fossem mais produtivos. Embora saiba que há toda uma corrente que pensa novas tecnologias que vai por esse caminho. E também reconheço que a tradição teatral, a idéia de cena, é sobretudo representacional....

Bom, talvez todo o problema seja mesmo o da precariedade da linguagem...


De Cezar, 16/09/2006, 08:54

Olá Ilana,
esta citação do Rancière está no livro "Malaise dans l'esthétique" , mas esta diferença entre um regime representativo e um regime estético - que começa, segundo R. - na virada do Séc. XVIII para XIX. Está com muita clareza também em um livro que está traduzido para o português que é  "A partilha do sensível".

Sobre a questão da representação queria colocar só que apesar de ser difícil, como colocou o Diego, ela existe não é? Pois, para mim não só ela existe como ela é uma dimensão inalienável do cinema. Mas, se o todo da imagem se dá como representação, se a imagem não guarda outra dimensão a não ser representar, aí é como se a imagem desaparecesse em favor do referente - o que significa também um desaparecimento do referente, pois tudo que não está na imagem deixa de existir.

O documentário enfrenta esse problema não? Como falar de algo e fazer com que este algo continue existindo para além do que eu falo, sem que eu tenha que me abster de falar do outro?
É por isso, ao meu ver, que estamos frequentemente defendendo escrituras (formas de fazer) singulares. Se estivéssemos no terreno da representação estaríamos discutindo se os policiais de Miami possuem ou não carrões, não é?

Talvez a precariedade da imagem seja o que procuramos não o problema. - Precária, fragmentada, lacunar, incompleta, mas uma imagem.

De Fernando Veríssimo, 18/09/2006, 05:09

> Se estivéssemos no terreno da representação estaríamos discutindo se os policias de Miami possuem ou não carrões, não é?

representação da realidade = realismo
não é esse o slogan? daí a instabilidade do conceito.

e a sempre útil lembrança do Jameson, que faz uma bela reflexão sobre o tópico pros nossos tempos em "A existência da Itália" (a partir da observação do Cabra Marcado, do Coutinho): qualquer teoria de "realismo" precisa explicitar os lugares onde o realismo não existe mais. ou ainda, onde ele assume formas transgressoras.
daí os carrões :)

-- ainda "historicizando": vale lembrar que "realismo" é contemporâneo do "capitalismo", em plena mudança de regime que o Rancière aponta...


De Ilana, 18/09/2006, 11:13

> Talvez a precariedade da imagem seja o que procuramos não o problema. - Precária, fragmentada, lacunar, incompleta, mas uma imagem. (Tens refereência sobre?)

Oi, Cezar,

Quem tem um trabalho sobre a "imagem frágil" no documentário é a Andréa França. Este era o tópico da fala dela no Visible Evidence e me paraceu bem interessante.

Mas, no caso, eu não me referia à precariedade da imagem em meu último email, mas à precariedade da linguagem. Porque me parece que usamos o termo 'representação' apenas por ausência de algum outro, algum outro menos comprometido e mais inocente... (embora nehum conceito seja inocente). Acho mesmo 'representação' um termozinho complicado, pois são muitas as implicações e, como vc bem disse, o imbróglio começa lá no sec. XVIII. Para o Foucault, aliás, é a 'crise da representação' que marca a passagem da era clássica para a era moderna. E, mais recentemente, no XIX, como lembrou o Veríssimo, a representação será reivindicada com todas as forças pelo realismo, para o qual a representação é mimetismo, "ilusionismo espelhado" ou "ilusão imitativa". Ou seja, para o realismo (ao menos enquanto discurso) a representação é a permanência do referente. Sempre. Sob esse prisma, não existiria representação em vários Lynch, nem em Shyamalan...


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