diário da redação
Em torno e a partir de Chico Xavier
edição de Fábio
Andrade
Embora seja desde sempre desejo utópico
da Cinética dar conta de todos os filmes nacionais que
entram em cartaz com uma resposta em texto crítico, como
toda e qualquer utopia esta é plenamente irrealizável.
Alguns filmes acabam sem serem vistos, outros tantos acabam sendo
vistos mas não conseguem inspirar nos redatores um texto,
seja por falta de argumentos/interesse direto por aquela obra,
seja porque as correrias do dia a dia e suas outras demandas muitas
vezes fazem perder o momento do filme. Era o que já ia
acontecendo com este Chico Xavier, filme importante nem
que fosse por sua condição de fenômeno de
público no ano de 2010. Curiosamente, porém, por
mais que não tenha chegado à forma de um texto,
a menção ao filme por um dos redatores em email
na lista da redação acabou gerando uma conversa
que talvez, na sua polifonia (que inclui até alguém
que não viu o filme), seja uma resposta mais interessante
ao filme do que qualquer texto que um dos envolvidos no papo acabasse
assinando sozinho. Ao leitor, o julgamento. (Eduardo Valente)
* * *
Juliano Gomes
Alguém mais viu o filme? Achei que ele levanta
várias bolas (e chuta pra fora do estádio a maioria delas), de
uma forma bem consciente. Fiquei com várias coisas na cabeça,
ainda meio confusas.
A discussão mais evidente é a questão da televisão,
na insistência em mostrar os bastidores do programa que estrutura
o filme. As entradas na "vida" dele são pelo zoom
na imagem da TV, e o esforço do filme é bastante de santificação
do Chico, de transformá-lo em imagem, de tratá-lo como tal. E
tem uma epígrafe, que exime o filme do esforço de sintetizar a
vida de homem, mas defende uma "fidelidade aos fatos e à
essência de seus atos". A fé na imagem me parece colocada
em jogo no filme, me lembrou o Maria do Ferrara, e a discussão
da MJ Mondzain sobre incorporação e encarnação. E acho que o filme
se coloca no lugar da adesão, da fusão à imagem, da não-distância.
O Tony Ramos é o personagem que faz a curva principal do filme:
o diretor de TV cético que, pela evidência da aparição, passa
a crer. A primeira imagem do filme é a do colírio do Chico, que
por conta da catarata, acaba enxergando cada vez menos enquanto
vê cada vez mais. Seus olhos sangram.
Para além disso tudo é um filme todo medido para
"públicos-alvo", principalmente para os católicos, e
tem algumas soluções de encenação bem ruins (e outras nem tanto).
Mas é bem menos nulo do que eu pensava, sem dúvida.
* * *
Eduardo Valente
Duas coisas no filme que me chamam a atenção,
Juliano:
Uma é o produto estudado tintim por tintim que
ele é, a maneira como Daniel Filho possui e trabalha uma fórmula
– o que eu acho bem impressionante (em todos os sentidos do termo,
para o bem e para o mal). Em suma, ele certamente tem fé
num cinema comercial (de novo, em todos os sentidos do termos).
É um homem de fé, claramente.
A segunda é que o filme se declara de saída "fiel
aos fatos", e na primeira sequência já dá presença de tela
a um fantasma (da mãe do Chico). Portanto, ele está dizendo que
é um fato que ele via os espíritos. Isso é algo bem interessante
de pensar no contexto que você diz do arco do personagem do Tony
Ramos, porque indica de fato um caminho rumo à luz (mas tudo isso
eu acho que o filme faz para justamente seguir a tal fórmula).
* * *
Luiz Soares Júnior
Juliano, não vi o filme, mas embarcando um pouco
nessa história, acho difícil – complexo, na verdade -, discutir
um status da imagem ligado ao valor de culto, se expresse ele
na dimensão do sagrado ou do fetichismo, porque a imagem, a rigor,
é justamente aquilo de que devemos desconfiar (ou exorcizar?):
A imagem é o lugar do fantasma, da projeção, do duplo; a imagem
é fugidia, evanescente, alienante. Ela seria justamente o contrário
de um objeto – ela nos escapa, ela nos rapta também – de culto
ou de fé (petrificação do dogma, traduzida numa estética da fascinação?).
Justamente por trabalhar com esta estética da
fascinação, com uma dimensão icônica da imagem, há filmes que
podem reivindicar este caráter sagrado para a imagem, mas são
filmes que pertencem, no meu modo de ver, a uma outra história
do cinema, a uma outra história do olhar; não narrativa-temporal,
sincônica-diacrônica, mas icônica: Ivan, o Terrível, o
díptico indiano de Lang, alguns filmes de Cecil B. DeMille mais
“escultóricos”, como Sansão e Cleópatra, os filmes de Paradjanov
, claro (que incorporaram plasticamente este princípio sob a forma
do tableaux vivant), Straub em certa medida e, na linha
dos Straubs, o único filme de Costa (ou o primeiro) talvez que
realmente deva algo a Straub, Juventude em Marcha.
Não sei como o filme do Daniel Filho trabalha
esta questão; o Ferrara trabalha justamente no sentido oposto,
embaralhando e tornando ainda mais movediças as fronteiras, colocando
o sagrado numa espécie de limbo que de “tabu, separado” não tem
nada, que é, pelo contrário a cristalização, sempre passageira
e “fondu”, num plano flutuante – aliciante de outros planos e
outras percepções para um mesmo centro, progressivamente recuado
e recuante, fugidio, de uma vivência menos do sagrado e mais de
uma experiência dos limites da percepção (ok, a parte maudite
ronda sempre estas relações, ao ultrapassar certos limites, acabamos
sempre do outro lado). Mas em Maria não acho que ele fala
da imagem como objeto de culto, ou diretamente da relação da imagem
com o sagrado, até porque esse “sagrado” é muito contaminado,
é feito de diversas imagens (programa de tv, vídeo amador das
explosões, a película, este neo-platonismo feito técnica), diversos
personagens. Ele ronda e revoluteia, sequer chega à alegoria ou
à parábola.
Se aquilo corresponde a um sagrado, certamente
é uma experiência do sagrado que não é a nossa, ou que nós, cristãos
e ocidentais, e sobretudo cristãos romanos, não temos como conceber
enquanto tal. Se há algo que possa ser relacionado ali a algo
deste tipo (no Maria), seria o caráter, revelado na coalescência
dos planos do filme e na trajetória dos próprios personagens,
sempre em conexão uns com os outros, de dom, de doação.
* * *
João Dumans
Essa questão da TV é muito delicada, porque ela
pode sugerir o desejo de estabelecer um distanciamento crítico
em relação à imagem do Chico Xavier que o filme, como um todo,
não tem. Não ignoro que esta presença do Chico enquanto imagem
possa ter surgido como uma questão pro Daniel Filho, mas pra mim
está claro que a TV ali é simplesmente uma estratégia dramatúrgica,
puramente funcional, aliás. É ela que permite uma sustentação
prolongada de um desenlace que só pode ter lugar no fim do filme
– não há momento mais propício, afinal, para tocar o espectador
e fazê-lo crer que viu algo interessante.
É claro, aliás, que a crítica do Inácio Araújo
perde todo sentido ao reivindicar do Daniel Filho um casting
menos global. Ora, a única razão de crermos que algo importante
está para se passar no filme é o fato de que Tony Ramos e Cristiane
Torloni estão lá. Sem a força da presença deles, os entediantes
entreatos do programa Pinga-Fogo não significam absolutamente
nada. Bom, servem como porta de entrada, por meio dos depoimentos
interrompidos do Chico Xavier, aos flashbacks. E aí é que,
na minha opinião, a coisa fica mais feia.
Primeiro porque num longa que elege um programa
de entrevistas como sua espinha dorsal, o mínimo que se pode esperar
é que o entrevistado – personagem principal do filme – fale. Mas
não, o Daniel Filho prefere relegar a "fala" aos momentos
documentais (e não é à toa que os créditos são o melhor momento
do filme). E no fim das contas, se o filme é sobre um homem que
psicografa, ou seja, que está em contato direto com a escrita,
seja lá por que meios, é sobretudo a "palavra" que deveria
estar em jogo.
Não é nada conceitual, isso. É simplesmente que
o mais interessante da figura do Chico Xavier, pelo que pode se
depreender daqueles momentos documentais finais, é a forma como
ele fala, como ele gesticula, como ele se auto-ironiza – além
dos modos afetados, da retórica hipnótica, da sexualidade em curto-circuito. Enfim,
não discordo de você em relação ao interesse dessa discussão da
questão da imagem, mas sinto que o Daniel Filho não leva ela muito
adiante. A coisa do colírio que você aponta também é muito interessante.
Mas me pergunto até que ponto não recolhemos esses cacos para
dar sentido conceitual a um filme que, já de saída, é muito pobre
formalmente.
* * *
Juliano Gomes
João,
em relação a esta coisa dos cacos, talvez seja mesmo um problema
insolúvel. Mas a "moldura dramatúrgica" da TV me surpreendeu
pela importância dada à ela, com todas aquelas cenas na mesa de
corte. E ao mesmo, tempo, ligados a um desejo de "fidelidade
aos fatos" da epígrafe, a "essência da vida de um homem",
num filme onde vemos fantasmas contracenando com personagens vivos,
e que fala sobre fenômenos sobrenaturais;
Júnior,
no filme, a imagem é sim o lugar dos fantasmas. Nós e o Chico
vemos, os outros não. Chico demora a acreditar nelas, e demora
mais a ainda quem está a sua volta. Entretanto (perdão pela heresia),
acho que o Daniel Filho se coloca mais perto do procedimento do
Ferrara, bagunçando o coreto, mas puxando a sardinha para o lado
dele, colocando a imagem da TV "real" nos créditos,
com o pai-nosso, para nos converter (nós, espectadores, crentes-descrentes
na imagem do cinema). O personagem do Tony Ramos me parece ser
o elo dessa relação, pois trabalha com as imagens "como construção"
na edição da TV, e só "acredita" quando lê a carta
do filho, quando se depara e aceita o que não tem explicação:
é ateu, mas acredita. E, engrossando este caldo, no final, a "evidência
sem explicação" que é a carta psicografada pelo filho morto
serve de prova num tribunal e inocenta o réu antes culpado.
* * *
Paulo Santos Lima
O filme já se coloca crente desde o início, mostrando
(sem nenhuma ambiguidade) os espíritos, acompanhando lealmente
seu protagonista. Não há, por assim dizer, conflitos, pois todos
são rapidamente resolvidos ou postos de lado (o que eu acho bom),
como o pai que quer salvar uma grana, a madrasta má, o sobrinho
que se enche o saco etc.
A idéia de usar a TV como mastro orientador me
é bem mais simples, mais direto, do que uma grande sacada estética.
A TV é, efetivamente, o momento de consagração do Chico como personagem
histórico, a ser levado a sério (ser levado a sério = acreditar).
O documento mais sólido que temos, hoje, sobre Chico Xavier é
sua imagem no Pinga-Fogo, programa solene da TV. Não há nada que
justifique mais uma imagem (-idéia) que uma outra imagem. O que
sinto, de todo modo, é que o filme não tem intenção de provar
pra gente que Chico Xavier... é Chico Xavier. Isso é quase um
dado. A ponto do Tony Ramos dizer-se ateu, mas acreditar... ou
seja, reconhecer o "trabalho" do Chico Xavier.
A TV ao final me parece mais o selo de garantia
do que o filme falou a todo instante (como tem no Cidade de
Deus do Meirelles) do que qualquer aproximação ao Ferrara,
pois pra ele a TV, o monitor, é mais um elemento de expiação (Blackout,
Maria), de esfacelamento do enunciado por meio de uma (re)confirmação
do discurso. Monitor = delírio e imersão fraturada. No Chico
Xavier, ele vem como soma reiterativa, como afago, como "idem".
Sobre o Tony Ramos , acho, claro, que a figura
dele é forte ponte entre tela e espectadores, mas não é inválido
vermos o trabalho dele no filme: o momento da leitura da carta
psicografada só é forte graças a ele. A crença estará na Justiça,
no que ela se abre para encontrar a "verdade", e Chico
Xavier é um meio para tal. Quando chegamos ao tribunal, Chico
Xavier aparece limpo, como item inquestionável, concreto por ser
o próprio julgamento dos justos. Num país como o nosso, isso parece
bastante relevante.
Enfim... Chico Xavier é mais a limpeza
de um personagem histórico cheio de obscuridades (sabemos dele
pelos livros, pela mitologia de seu trabalho) para torná-lo certeiro,
total, simbólico. Um processo de “simbologização”. O filme faz
isso pegando o mínimo, o específico de um punhado de passagens.
E a TV, no caso, não é uma imagem instável (por mais que a montagem
inicial tente criar um certo caos e fragmentacão): é a própria
Imagem.
Maio de 2010
editoria@revistacinetica.com.br
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