diário da redação
Em torno e a partir de Chico Xavier
edição de Fábio Andrade

Embora seja desde sempre desejo utópico da Cinética dar conta de todos os filmes nacionais que entram em cartaz com uma resposta em texto crítico, como toda e qualquer utopia esta é plenamente irrealizável. Alguns filmes acabam sem serem vistos, outros tantos acabam sendo vistos mas não conseguem inspirar nos redatores um texto, seja por falta de argumentos/interesse direto por aquela obra, seja porque as correrias do dia a dia e suas outras demandas muitas vezes fazem perder o momento do filme. Era o que já ia acontecendo com este Chico Xavier, filme importante nem que fosse por sua condição de fenômeno de público no ano de 2010. Curiosamente, porém, por mais que não tenha chegado à forma de um texto, a menção ao filme por um dos redatores em email na lista da redação acabou gerando uma conversa que talvez, na sua polifonia (que inclui até alguém que não viu o filme), seja uma resposta mais interessante ao filme do que qualquer texto que um dos envolvidos no papo acabasse assinando sozinho. Ao leitor, o julgamento. (Eduardo Valente)

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Juliano Gomes

Alguém mais viu o filme? Achei que ele levanta várias bolas (e chuta pra fora do estádio a maioria delas), de uma forma bem consciente. Fiquei com várias coisas na cabeça, ainda meio confusas.

A discussão mais evidente é a questão da televisão, na insistência em mostrar os bastidores do programa que estrutura o filme. As entradas na "vida" dele são pelo zoom na imagem da TV, e o esforço do filme é bastante de santificação do Chico, de transformá-lo em imagem, de tratá-lo como tal. E tem uma epígrafe, que exime o filme do esforço de sintetizar a vida de homem, mas defende uma "fidelidade aos fatos e à essência de seus atos". A fé na imagem me parece colocada em jogo no filme, me lembrou o Maria do Ferrara, e a discussão da MJ Mondzain sobre incorporação e encarnação. E acho que o filme se coloca no lugar da adesão, da fusão à imagem, da não-distância. O Tony Ramos é o personagem que faz a curva principal do filme: o diretor de TV cético que, pela evidência da aparição, passa a crer. A primeira imagem do filme é a do colírio do Chico, que por conta da catarata, acaba enxergando cada vez menos enquanto vê cada vez mais. Seus olhos sangram.

Para além disso tudo é um filme todo medido para "públicos-alvo", principalmente para os católicos, e tem algumas soluções de encenação bem ruins (e outras nem tanto). Mas é bem menos nulo do que eu pensava, sem dúvida.

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Eduardo Valente

Duas coisas no filme que me chamam a atenção, Juliano:

Uma é o produto estudado tintim por tintim que ele é, a maneira como Daniel Filho possui e trabalha uma fórmula – o que eu acho bem impressionante (em todos os sentidos do termo, para o bem e para o mal). Em suma, ele certamente tem fé num cinema comercial (de novo, em todos os sentidos do termos). É um homem de fé, claramente.

A segunda é que o filme se declara de saída "fiel aos fatos", e na primeira sequência já dá presença de tela a um fantasma (da mãe do Chico). Portanto, ele está dizendo que é um fato que ele via os espíritos. Isso é algo bem interessante de pensar no contexto que você diz do arco do personagem do Tony Ramos, porque indica de fato um caminho rumo à luz (mas tudo isso eu acho que o filme faz para justamente seguir a tal fórmula).

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Luiz Soares Júnior

Juliano, não vi o filme, mas embarcando um pouco nessa história, acho difícil – complexo, na verdade -, discutir um status da imagem ligado ao valor de culto, se expresse ele na dimensão do sagrado ou do fetichismo, porque a imagem, a rigor, é justamente aquilo de que devemos desconfiar (ou exorcizar?): A imagem é o lugar do fantasma, da projeção, do duplo; a imagem é fugidia, evanescente, alienante. Ela seria justamente o contrário de um objeto – ela nos escapa, ela nos rapta também – de culto ou de fé (petrificação do dogma, traduzida numa estética da fascinação?).

Justamente por trabalhar com esta estética da fascinação, com uma dimensão icônica da imagem, há filmes que podem reivindicar este caráter sagrado para a imagem, mas são filmes que pertencem, no meu modo de ver, a uma outra história do cinema, a uma outra história do olhar; não narrativa-temporal, sincônica-diacrônica, mas icônica: Ivan, o Terrível, o díptico indiano de Lang, alguns filmes de Cecil B. DeMille mais “escultóricos”, como Sansão e Cleópatra, os filmes de Paradjanov , claro (que incorporaram plasticamente este princípio sob a forma do tableaux vivant), Straub em certa medida e, na linha dos Straubs, o único filme de Costa (ou o primeiro) talvez que realmente deva algo a Straub, Juventude em Marcha.

Não sei como o filme do Daniel Filho trabalha esta questão; o Ferrara trabalha justamente no sentido oposto, embaralhando e tornando ainda mais movediças as fronteiras, colocando o sagrado numa espécie de limbo que de “tabu, separado” não tem nada, que é, pelo contrário a cristalização, sempre passageira e “fondu”, num plano flutuante – aliciante de outros planos e outras percepções para um mesmo centro, progressivamente recuado e recuante, fugidio, de uma vivência menos do sagrado e mais de uma experiência dos limites da percepção (ok, a parte maudite ronda sempre estas relações, ao ultrapassar certos limites, acabamos sempre do outro lado). Mas em Maria não acho que ele fala da imagem como objeto de culto, ou diretamente da relação da imagem com o sagrado, até porque esse “sagrado” é muito contaminado, é feito de diversas imagens (programa de tv, vídeo amador das explosões, a película, este neo-platonismo feito técnica), diversos personagens. Ele ronda e revoluteia, sequer chega à alegoria ou à parábola.

Se aquilo corresponde a um sagrado, certamente é uma experiência do sagrado que não é a nossa, ou que nós, cristãos e ocidentais, e sobretudo cristãos romanos, não temos como conceber enquanto tal. Se há algo que possa ser relacionado ali a algo deste tipo (no Maria), seria o caráter, revelado na coalescência dos planos do filme e na trajetória dos próprios personagens, sempre em conexão uns com os outros, de dom, de doação.

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João Dumans

Essa questão da TV é muito delicada, porque ela pode sugerir o desejo de estabelecer um distanciamento crítico em relação à imagem do Chico Xavier que o filme, como um todo, não tem. Não ignoro que esta presença do Chico enquanto imagem possa ter surgido como uma questão pro Daniel Filho, mas pra mim está claro que a TV ali é simplesmente uma estratégia dramatúrgica, puramente funcional, aliás. É ela que permite uma sustentação prolongada de um desenlace que só pode ter lugar no fim do filme – não há momento mais propício, afinal, para tocar o espectador e fazê-lo crer que viu algo interessante.

É claro, aliás, que a crítica do Inácio Araújo perde todo sentido ao reivindicar do Daniel Filho um casting menos global. Ora, a única razão de crermos que algo importante está para se passar no filme é o fato de que Tony Ramos e Cristiane Torloni estão lá. Sem a força da presença deles, os entediantes entreatos do programa Pinga-Fogo não significam absolutamente nada. Bom, servem como porta de entrada, por meio dos depoimentos interrompidos do Chico Xavier, aos flashbacks. E aí é que, na minha opinião, a coisa fica mais feia.

Primeiro porque num longa que elege um programa de entrevistas como sua espinha dorsal, o mínimo que se pode esperar é que o entrevistado – personagem principal do filme – fale. Mas não, o Daniel Filho prefere relegar a "fala" aos momentos documentais (e não é à toa que os créditos são o melhor momento do filme). E no fim das contas, se o filme é sobre um homem que psicografa, ou seja, que está em contato direto com a escrita, seja lá por que meios, é sobretudo a "palavra" que deveria estar em jogo.

Não é nada conceitual, isso. É simplesmente que o mais interessante da figura do Chico Xavier, pelo que pode se depreender daqueles momentos documentais finais, é a forma como ele fala, como ele gesticula, como ele se auto-ironiza – além dos modos afetados, da retórica hipnótica, da sexualidade em curto-circuito. Enfim, não discordo de você em relação ao interesse dessa discussão da questão da imagem, mas sinto que o Daniel Filho não leva ela muito adiante. A coisa do colírio que você aponta também é muito interessante. Mas me pergunto até que ponto não recolhemos esses cacos para dar sentido conceitual a um filme que, já de saída, é muito pobre formalmente.

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Juliano Gomes

João,
em relação a esta coisa dos cacos, talvez seja mesmo um problema insolúvel. Mas a "moldura dramatúrgica" da TV me surpreendeu pela importância dada à ela, com todas aquelas cenas na mesa de corte. E ao mesmo, tempo, ligados a um desejo de "fidelidade aos fatos" da epígrafe, a "essência da vida de um homem", num filme onde vemos fantasmas contracenando com personagens vivos, e que fala sobre fenômenos sobrenaturais;

Júnior,
no filme, a imagem é sim o lugar dos fantasmas. Nós e o Chico vemos, os outros não. Chico demora a acreditar nelas, e demora mais a ainda quem está a sua volta. Entretanto (perdão pela heresia), acho que o Daniel Filho se coloca mais perto do procedimento do Ferrara, bagunçando o coreto, mas puxando a sardinha para o lado dele, colocando a imagem da TV "real" nos créditos, com o pai-nosso, para nos converter (nós, espectadores, crentes-descrentes na imagem do cinema). O personagem do Tony Ramos me parece ser o elo dessa relação, pois trabalha com as imagens "como construção" na edição da TV, e  só "acredita" quando lê a carta do filho, quando se depara e aceita o que não tem explicação: é ateu, mas acredita. E, engrossando este caldo, no final, a "evidência sem explicação" que é a carta psicografada pelo filho morto serve de prova num tribunal e inocenta o réu antes culpado.

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Paulo Santos Lima

O filme já se coloca crente desde o início, mostrando (sem nenhuma ambiguidade) os espíritos, acompanhando lealmente seu protagonista. Não há, por assim dizer, conflitos, pois todos são rapidamente resolvidos ou postos de lado (o que eu acho bom), como o pai que quer salvar uma grana, a madrasta má, o sobrinho que se enche o saco etc.

A idéia de usar a TV como mastro orientador me é bem mais simples, mais direto, do que uma grande sacada estética. A TV é, efetivamente, o momento de consagração do Chico como personagem histórico, a ser levado a sério (ser levado a sério = acreditar). O documento mais sólido que temos, hoje, sobre Chico Xavier é sua imagem no Pinga-Fogo, programa solene da TV. Não há nada que justifique mais uma imagem (-idéia) que uma outra imagem. O que sinto, de todo modo, é que o filme não tem intenção de provar pra gente que Chico Xavier... é Chico Xavier. Isso é quase um dado. A ponto do Tony Ramos dizer-se ateu, mas acreditar... ou seja, reconhecer o "trabalho" do Chico Xavier.

A TV ao final me parece mais o selo de garantia do que o filme falou a todo instante (como tem no Cidade de Deus do Meirelles) do que qualquer aproximação ao Ferrara, pois pra ele a TV, o monitor, é mais um elemento de expiação (Blackout, Maria), de esfacelamento do enunciado por meio de uma (re)confirmação do discurso. Monitor = delírio e imersão fraturada. No Chico Xavier, ele vem como soma reiterativa, como afago, como "idem".

Sobre o Tony Ramos , acho, claro, que a figura dele é forte ponte entre tela e espectadores, mas não é inválido vermos o trabalho dele no filme: o momento da leitura da carta psicografada só é forte graças a ele. A crença estará na Justiça, no que ela se abre para encontrar a "verdade", e Chico Xavier é um meio para tal. Quando chegamos ao tribunal, Chico Xavier aparece limpo, como item inquestionável, concreto por ser o próprio julgamento dos justos. Num país como o nosso, isso parece bastante relevante.

Enfim... Chico Xavier é mais a limpeza de um personagem histórico cheio de obscuridades (sabemos dele pelos livros, pela mitologia de seu trabalho) para torná-lo certeiro, total, simbólico. Um processo de “simbologização”. O filme faz isso pegando o mínimo, o específico de um punhado de passagens. E a TV, no caso, não é uma imagem instável (por mais que a montagem inicial tente criar um certo caos e fragmentacão): é a própria Imagem.

Maio de 2010

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