diário da redação
Assistindo Capitu - mas não só
edição de Eduardo Valente

É bem possível, para não dizer garantido, que há coisas tão ou bem mais interessantes sendo exibidas pelas TVs brasileiras (abertas e/ou a cabo) - no entanto, é inegável o poder de atração que Luiz Fernando Carvalho (e a Rede Globo, claro) consegue gerar para seus trabalhos, se colocando no foco da discussão sobre a linguagem televisiva sempre que os exibe. Não foi diferente na redação da Cinética durante a recente exibição de Capitu, sua última "micro-série". "Durante a exibição", diga-se, é expressão certeira, já que a troca de emails abaixo ocorreu entre a madrugada do dia 10 e o dia 13 de dezembro - dias em que foram ao ar o primeiro e o último capítulo da série (que, aliás, pode ser toda vista, ainda que em pedaços, a partir deste endereço). Embora não seja surpresa que a série dê vazão a impressões discordantes na redação (como já havia acontecido com A Pedra do Reino), não deixa de ser curioso notar que, quase no fim da conversa, ela acaba perdendo o centro da discussão para um produto a princípio bem menos nobre da teledramaturgia global - numa reviravolta, convenhamos, dramática!

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Felipe Bragança, 10/12/2008, 01:16

Tava agora vendo trechos do primeiro episódio de Capitu na web. Tem coisas bonitas, mas não consigo me pegar no fluxo truncado que ele gosta – aquelas variações de grande angulares com personagens arqueados e declamantes e falsos raccords cíclicos... Não condeno – e falo como observador/realizador; só não me pega. O texto do Machado é foda, foda, foda e está presente toda vida – bingo! Claro que a primeira fase, com o amor adolescente, por vício, me interessa mais. Mas até que a solução teatral de se filmar tudo em um grande palco-estúdio fez sentido quando ele torna o livro todo uma caverna para a memória do personagem e prefiro um rockzinho pra animar do que aqueles re-cordéis. Ainda assim – um bocadinho cansativo.

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Leonardo Mecchi, 10/12/2008, 09:27

Pois eu achei do caralho! A força do texto do Machado está toda lá. Fidelíssimo, mas sem pompa, sem "declamações", Felipe, mas com uma fluidez surpreendente e resgatando o humor ácido de Machado. Um trabalho de destacar na imagem a atemporalidade de seu texto, mesclando tatuagens a imagens de arquivo de um quase primeiro cinema. O trabalho dos atores está excelente, em especial do velho Dom Casmurro e com a exceção talvez do jovem Bentinho. O olhar de Capitu é realmente impressionante, de se mergulhar numa tempestade que se sabe fatal, mas ainda assim (e talvez por isso) irresistível.

Não vou entrar na questão da fotografia e da direção de arte, que são os artifícios mais evidentes, mas há momentos dos mais belos do audiovisual brasileiro neste ano, como a entrada em cena de Capitu, por exemplo, que é de chorar. E vc falou em rockzinho, Felipe? O cara colocou Sex Pistols pra apresentar a carola mãe de Bentinho! Sex Pistols!

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Felipe Bragança, 10/12/2008, 10:03

De facto: os olhinhos de Capitu tão que tão. E eles, os olhos e Bentinho, correndo atrás do giz é adorável à vera. Emociona. Meu distanciamento é causado/cansado muito pela relação de entre-quadros e o uso de lentes: curto pouco o vai e volta entre grandes angulares e teles e a forma como se faz com o que o texto tente ficar costurando essa sanfona de recuos e ins. Atores tão bem e certeiros no lugar do texto e cenografia – achou-se ali uma verdade teatral.

Agora – isso eu gostei em proporções boas: há uma vontade de jovialidade/comer cultura de massa que nunca tinha visto no LFC e pouco se vê na criação audiovisual feita no Brasil, etc e etc e mesma tecla, tecla, tecla...

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Ilana Feldman, 10/12/2008, 10:46

Como espectadora e como "crítica", e tendo sido leitora do livro, fico muito feliz que a idéia de "opera mundi" tenha se radicalizado – e se transformado em uma abissal "ópera rock"!; que a Teoria do Marcolini tenha finalmente vencido! (Leiam o capítulo "A ópera", maravilhoso, e que me parece ser o grande conceito norteador da série); e que o Armorial – enfim! – tenha se tropicalizado (para reencontrar, paradoxalmente, sua originária dimensão imperial).

Capitu, ao felizmente não ser sobre "Dom Casmurro", mas sobre a encenação de "Dom Casmurro", permite uma liberdade estética e poética desconcertantes. A linguagem epifânica de A Pedra do Reino agora é ainda mais extasiante, a julgar pelo primeiro capítulo. Porém, como dizia o próprio Marcolini, amigo de Casmurro, na vida – como na ópera – todos querem ser tenores!, o que produz na série um certo efeito de "equivalência", uma sensação de sucedâneos de intensidades (produzidos pelo ritmo dos cortes e por essa variação entre "aproximações deformadas" e "distanciamentos aproximados", entre as grande angulares e as teles de que fala o Felipe).

O perigo dessa opção é que o espaço da cena deixa de existir (e a relação dos corpos com o espaço, conseqüentemente) para termos um fluxo abissal de performances e elementos visuais, sem falar no fluxo sonoro e musical. Uma ópera contemporânea, claro, mas talvez, pela primeira vez, um pouco demais para minha sensibilidade -- "Eu quero reter!", senti vontade de dizer. O que não exclui, claro, momentos belíssimos, como a entrada em cena de Capitu; como quando Bentinho e Capitu estão deitados sobre um gigante quadro-negro, cujos desenhos parecem um imenso bordado de palimpsestos; como quando, na sequência inicial, o trem para a periferia de São Paulo se associa e se funde a todos os trens, de todos os tempos.

Enfim, um espetáculo, em seu sentido mais pleno e inaugural. Como se todas as óperas fossem a mesma ópera, como se todas as vidas fossem a mesma vida: Quaderna se transfigurando em Casmurro (mas eu quero mais é o tempo do olhar de Capitu). Veremos os próximos capítulos.

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Leonardo Mecchi, 10/12/2008, 14:24

É curioso quando você fala em Capitu ser sobre a encenação de "Dom Casmurro", pq realmente me chamou a atenção o posicionamento do próprio Casmurro como um metteur en scène de toda aquela ópera, mais do que um cicerone propriamente dito, o que acho extremamente acertado em se tratando de uma obra memorialista como "Dom Casmurro", onde conta mais a construção de uma memória do que sua simples narração. Mas acho engraçado você dizer que é um pouco demais para sua sensibilidade, já que para mim Capitu está claramente um tom abaixo da Pedra do Reino. Há sim, a bem da verdade, um transbordamento de intensidades (que a meu ver tem um impacto maior no tempo que no espaço), mas acho que isso faz parte do projeto contemporaneizador da obra (muito além dos hiperlinks furtadianos). A ver se, como aconteceu comigo na Pedra do Reino, isso não fatigará ao longo dos episódios.

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Marcus Mello, 12/12/2008, 14:44

Vi apenas um episódio de Capitu (o segundo), querendo muito gostar. As fotos de divulgação e as chamadas de TV prometiam um belo espetáculo. Mas quando o negócio começa, o espetáculo não vem, e a incrível história de Dom Casmurro acaba sendo sufocada por uma encenação excessiva, que parece gritar o tempo todo “vejam como eu consigo ser tão genial quanto o Machado!”. E essa ostensividade da encenação, na minha opinião, fere a essência do Machado, que é um escritor de sutilezas e ambigüidades. Das duas uma, ou o LFC não entendeu o livro ou quer berrar para o mundo que entendeu melhor do que ninguém. Um exemplo: aquele jovem Bentinho super gay e afetado acaba com as ambigüidades da relação de amizade entre Bentinho e Escobar, que é uma das tantas riquezas do livro.

Pretendo ver tudo quando sair em DVD, mas a minha primeira impressão não foi boa não. Não sei se me expliquei bem, mas é mais ou menos como se a Santa Ceia fosse reencenada pelo Peter Greenaway (ou pior, pelo Baz Luhrmann). Por enquanto, me perdoe Ilana, achei a coisa toda meio cafona (embora o evidente esforço para parecer ultra-sofisticado). O que não significa que não respeite muito o trabalho do LFC (para mim, as novelas, como O Rei do Gado, ainda são o que ele fez de melhor na televisão).

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Ilana Feldman, 12/12/ 2008, 15:26

Marcus,
Respeito totalmente seu desconforto com o excesso (até porque, em parte, também concordo). Já sobre a "adaptação", acho que essa aproximação feita pela série está muito mais próxima dos delírios de Bentinho – um homem que padecia de sua imaginação – do que da leitura realista que, historicamente, a crítica fez de Machado. Nesse sentido, me parece completamente coerente.

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Marcus Mello, 12/12/2008, 17:07

Ilana,
como disse, vi apenas um episódio, o que é muito pouco para avaliar o todo. Sobre a adaptação em si, o Bentinho é um paranóico de primeira, mas não chega a ser delirante como o LFC pinta (pelo menos é essa a memória que eu tenho das minhas duas ou três leituras do livro). Nesse aspecto, acho que as opções dele teriam se aplicado melhor ao Brás Cubas, esse sim um completo delírio (imagina o LFC dirigindo a seqüência do sonho do “Memórias Póstumas...”), ou a “O Alienista”. Mas o melhor de tudo é que Capitu e sua recepção despertam uma vontade enorme de voltar aos livros do Machado outra vez.

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Felipe Bragança, 12/12/2008, 21:46

Depois de uma ou outra cena EXTREMAMENTE cativante dos meninotes, o estilo do LFC já me cansou de novo. Mas vou ver até o final. Sabia que às vezes que eu acho que falta a ele um apuro de artesanato mesmo? Que falta ali uma consistência de filmagem/montagem pra ele tentar fazer o que parece estar tentando? Tô saindo da questão conceitual/intenção e indo pro artesanato da coisa, o TRABALHO: me dá uma sensação de uma vontade de arrojo meio sem jeito. Penso nisso: acho a montagem bem abaixo do resto, ajudando a chamar atenção mais pras coisas ruins (que são muitas) do que pras boas (que conseguem ser adoráveis). E, sim: parece demais que ele resolveu fazer um Baz Lurhmann do Machado.

Por outro lado... genial a morte do Mauro Mendonça na Favorita!! Transição de gêneros do caralho, do melodrama de peripécias para uma instalação de terror. Melhor 5 minutos que vi esse ano rodados no Brasil. Aquilo sim é bizarro: jovem, experimental e bom demais!
(N. do E.: a cena também pode ser vista na web, aqui).

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Luis Soares Júnior, 12/12/2008, 23:31

Já eu continuo achando que o que falta na Globo são encenadores. O argumento da novela valeu, o conceito entendi, ok. Mas a encenação é ruim de doer: de fazer The Funhouse tornar-se um Stephen Dwoskin para adolescentes. Quanto a Capitu, o problema maior para mim é de mise-en-scéne mesmo: o espaço e o tempo da história não servem à dramaturgia. A decupagem das cenas de diálogo, de embate dramático é lamentavelmente preguiçosa e vulgar e monótona, enquanto a fanfarra passa "por fora e por cima", sem acrescentar nada ao drama. Melo+drama costumava ser uma operação de síntese na ópera e outros maneirismos; virou agora a caça da gramática acadêmica pelo decadentismo endêmico.

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Ilana Feldman, 12/12/2008, 23:39

A Favorita está se superando... minha nossa senhora, sem limites aquele terror B! Muito bom!!! (Porque também muito ruim!). Nas duas últimas semanas virei noveleira fervorosa. OK, a encenação pode ser péssima, mas novela não é feita da relação espaço+tempo (com exceção de Pantanal). O que vale são as atuações da Patricia Pilar, do Mauro Mendonça e do Murilo Benício. Eles são os favoritos. E, se o resto não se sustenta (e não se sustenta mesmo), também não vejo problema. Quem faz a ópera são os tenores (e, em A Favorita, como bom melodrama, cada um sabe o seu devido lugar! -- aliás, o que foram os discursos do Mauro Mendonça sobre os "fortes e ambiciosos"...)

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Felipe Bragança, 13/12/2008, 00:02

Eu nem achei a encenação péssima; aliás, não sei bem o que é uma encenação péssima - assim, absolutamente. Acho que não se divide assim uma coisa da outra numa instalação de clima como aquele ali. Eis uma coisa: a imagem conseguiu virar coisa ali. E isso é encenar com gosto, seja lá o gosto a que agradar mais ou não.

Sobre a Capitu – pois é: tem um desejo de estilo nas partes ali que não consegue se concretizar em dinâmica e, olhando cada ponto da feitura ali, insisto: a montagem é muito fraca. Só se vira bem nos videoclipes do Beirut de cada capítulo.

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Ilana Feldman, 13/12/2008, 09:34

Quando falei da encenação péssima de A Favorita me referia à novela como um todo, na maior parte do tempo canhestra mesmo, e não ao capítulo de ontem – que, como alguns outros, teve claramente outra dinâmica, outra construção de atmosfera. Com tantos "núcleos" dentro de um núcleo-cabeça, acho que toda novela padece dessa irregularidade. A maior parte das cenas é feita a toque de caixa, mas, sempre em cada capítulo, há um momento cuja construção é mais elaborada, como para garantir aquele tal "padrão de qualidade".

Dezembro de 2008

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