diário da redação
Caché em debate
edição de Eduardo Valente

Nem sempre todas as discussões sobre cinema e filmes que acontecem entre os redatores da Cinética chegam até os leitores. Muitas vezes, idéias circulam entre os redatores e acabam não evoluindo até a forma final de um texto publicado na revista - embora várias vezes possam acabar influenciando diretamente textos que são colocados no ar. Parte da idéia deste Diário da Redação vem da crença de que, se esta é uma revista cujo pensamento busca estar constantemente em movimento, nada mais justo que o leitor tenha acesso a alguns destes movimentos em estado bruto - como nesta troca de idéias entre dois redatores sobre o filme de Michael Haneke (que recebeu crítica de um outro redator na revista).

* * *

De Cezar Migliorin, 15/05/2006, 19:23
Sobre o Caché é mais ou menos o seguinte

1 - O que se coloca para Haneke é: como construir essa conexão entre Daniel Auteil e Rajid, 50 anos depois, e ainda tornar plausível os desdobramentos que a reconexão terá. A opção dele, é, então pelos desvios da própria relação entre os dois e do presente da família de DA. Os jantares, o cansaço, a espera do filho, o trabalho na TV e os longos planos que observam a família de DA.

Estes planos longos merecem especial atenção. Assim começa o filme; com um longuíssimo plano da casa de DA. Logo este plano se torna “longo demais”, toda sua função de plano de apresentação já se deu, aí o espectador recorre a memória dos planos que duram; vigilância. Em um mesmo plano temos então esta passagem, da apresentação à vigilância, sem que nenhuma textura diferente tenha sido escolhida pelo fato de ser um plano de “vigilância”.

Mas é a temporalidade destes planos, ainda, que nos coloca na dimensão do inexplicável do roteiro, do inexplicável que é o retorno dessa relação. Os longos planos em que Daniel Auteil é observado, ou vigiado, são na verdade os reais flashbacks do filme. O que ocorreu nos 50 que separam os encontros entre os dois personagens se materializa nesta silenciosa observação longa, cansativa, repetitiva, enervante. Haneke inventou a câmera de vigilância que filma o passado. Isso bastaria para fazer um filme brilhante.

2 - Não gosto de cenas como a do ciclista negro. São formas estereotipadas de expor a tensão racial e social.

abraços
Cezar


De Ilana Feldman, 15/05/2006, 22:14

>Haneke inventou a câmera de vigilância que filma o passado.

Cezar,

Muito interessante isso. Mas, radicalizando a questão, não seria o cinema, desde sua gênese, uma "máquina de espreita" moderna? Ou uma "máquina de espiar", nas palavras do Virilio? Thomas Levin, aquele pesquisador que foi certa vez à Eco, defendia inclusive que A saída da fábrica dos irmãos Lumière seria já uma imagem de vigilância... Quanto ao Caché, acho que a opção, em muitos momentos, pelo plano geral - associado ao dispositivo da vigilância por sua suposta tentativa de "totalização" dos espaços (ou, ao menos, pela totalização do espaço recortado), e por sua duração, diz mais sobre a questão da revelação e do engano no cinema que propriamente da vigilância. 

Por exemplo: em uma imagem do passado, quando Majid criança é levado ao orfanato por um carro, e a câmera está fixa e bem distante (imagino que seja essa imagem a que você se refere quando diz que Haneke inventou a câmera de vigilância que filma o passado), fica evidente que quanto mais uma imagem mostra, menos ela revela – e, consequentemente, o esforço de encadeamento de sentidos será responsabilidade do espectador. Essa questão volta na forma de uma "pegadinha" no plano final, quando Haneke literalmente brinca com o olhar (des)atento do espectador, ocultando os personagens na lateral de um plano entrecortado por luz e sombras, em um final supostamente "aberto" (no sentido de uma narrativa com seu sentido não previamente totalizado), mas extremamente esquematizado.

Aliás, interessante como as "aberturas" de sentidos estão programadas no filme – não há nada que não seja funcional. Do quase-atropelamento pelo ciclista negro, de que você não gosta, às cenas do campeonato de natação do filho Pierrot. Essas estão no filme apenas para informar que, enquanto os pais corujas assistem a Pierrot competindo, a figuração de pais na arquibancada assistem a seus filhos com câmeras filmadoras em punho. Relação com os filhos, e com a vida, mediada pelas tecnologias de visão, portanto.

Do mesmo modo, vejo a questão da "duração" de certos planos, que você apontou como um componente da vigilância, como menos uma imagem que dura do que como uma imagem que apenas tem seu tempo dilatado. As imagens de vigilância não duram (no sentido bergsoniano), apenas persistem, insistem, pois são desprovidas da dimensão da experiência, sendo pura informação. Essa, acho, é uma perigosa armadilha do filme. Ser enredado pelo seu próprio dispositivo, transformando o que seria da ordem da duração (a temporalidade das imagens) em pura informação, através de um funcionalismo excessivo.

 No entanto, como aula de cinema, acho-o genial e dificilmente as questões quem narra?, quem manipula?, quem é autor?, e qual a relação entre autor e narrador? estariam melhor colocadas... Mas, como experiência cinematográfica, tenho dúvidas... Talvez eu queira mais do cinema (e aqui, como evitar?, eu também estou sendo programática)... Porém, certamente, o que quero é mobilizado pela asfixia do filme, que finge dar a ver para logo em seguida esconder.

Beijo,
Ilana


De Cezar Migliorin, 16/05/2006, 10:21

Ilana, vc me dá um trabalho... Que bom!

Engraçado, eu tinha lembrado de um texto do Levin também em uma conversa com a Consuelo sobre o filme. Tentávamos saber: quem mandou as fitas? Indo no caminho da tua reflexão e a do Levin, a resposta é que quem mandou as fitas foi "o cinema". Acho boa a resposta, mas também não deixa de ser uma piada.

Sobre a temporalidade dos planos, eu estava pensando não só nos planos que são explicitamente flash-backs e se apresentam como vigilância – afinal é essa estética que assume grande parte do filme – mas no primeiro plano, por exemplo. Acho que é sim na temporalidade dos planos de vigilância que nos aproximamos do que leva Rajid a se matar. O tempo ali é mais que dilatado, ele nos remete a sensação do tempo que separou os dois encontros. Não temos as chaves que justifiquem o suicídio, mas a sensação através da duração desses planos – estou pensando no plano de abertura.

Você tem toda razão: a funcionalidade de algumas sequencias é lamentável. Mas, tendo a apagá-las diante do que me agrada e mobiliza.

Beijos,
Cezar


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