in loco
Diário de Cannes - Dia 9
por Eduardo Valente
Indigènes,
de Rachid Bouchareb (França/Marrocos/Argélia/Bélgica, 2006) –
Competição
Se o cinema se desse só na tela, isolado do mundo,
talvez Indigènes passasse como apenas mais um filme de
guerra – hiper-competente na reconstituição de época da II Guerra
Mundial, dramaticamente bem resolvido, emocionante pelos dramas
humanos que coloca em cena. Só que ele é bem mais do que isso,
porque o cinema se dá no mundo e na História – e Indigènes
não é mais um filme de guerra e sim aquele que coloca, pela primeira
vez na tela como protagonista, a história dos africanos do norte,
nativos das colônias francesas, que lutaram na Europa justamente
para libertar a França (a “pátria-mãe”) do domínio nazista. Esta
situação absolutamente sui generis de povos conquistados
que vão brigar para libertar o seu conquistador é o que garante
ao filme uma pungência absolutamente única. E esta pungência é
tão mais funcional porque Bouchareb não a coloca em cena através
de discursos e explicações, mas sim através de um cinema extremamente
físico – ainda que eventualmente usando as ferramentas de praxe
na construção de personagens, etc. Mas, principalmente, o filme
ganha força quando o colocamos em contato com a França e a Europa
do presente, em conflitos internos fortíssimos com os resquícios
de seu passado colonial, com a imigração africana e árabe, e com
os filhos das suas ex-colônias. Dentro deste contexto, o filme
de Bouchareb torna-se mais do que urgente, e é especialmente bonito
por colocar lado a lado, pela primeira vez, os 4 grandes atores/estrelas
do cinema francês de origem norte-africana. Dentro de todos estes
contextos, assistir Indigènes numa sessão pública na França
revela-se uma experiência única, talvez o grande evento político
do Festival até agora.
* * *
A fost sau n-a fost?, de Corneliu Porumboiu
(Romênia, 2006) – Quinzena dos Realizadores
Eu ontem tinha dito que podíamos esperar ver,
logo, um novo bom filme romeno – só não esperava que fosse tão
logo assim. Com seu longa de estréia, Porumboiu confirma a Romênia
como o lar da mais interessante geração de cineastas muito jovens
(Cristi Puiu, Catalin Mitulescu), especialmente porque todos os
três são bastante próximos, colaboram nos projetos uns dos outros,
etc. Esse tipo de proximidade é muito pouco comum no cinema mundial,
mas quase inevitável num país que mal produz 5 longas por ano.
O filme de Porumboiu é um fascinante complemento ao que vimos
ontem, de Mitulescu: se aquele tratava de uma família no ano da
revolução romena de 1989, que derrubou Ceausescu, este agora se
passa no presente, mas tendo como foco principal um programa de
TV mambembe onde ocorre um debate sobre a participação ou não
da pequena comunidade local no movimento de 89. A partir deste
programa são revirados uma série de ressentimentos latentes da
pequena comunidade, e no conjunto dos dois filmes, Porumboiu e
Mitulescu deixam claro a importância decisiva deste movimento
no imaginário da geração que se formou nos anos 80-90. Além das
suas observações riquíssimas sobre a política e a sociedade local,
o filme de Porumboiu tem uma característica cada vez mais rara
em Cannes: é uma comédia quase rasgada, e engraçadíssima. A partir
de um retrato ácido, mas ao mesmo tempo afetuoso, desta Romênia
que lida mal com um passado traumático, Porumboiu arrancou as
gargalhadas mais escancaradas ouvidas na seleção deste ano.
* * *
Curiosamente,
o longa de estréia que realmente dominou as atenções em Cannes
ontem não concorrerá à Camera D’Or... porque foi feito 20 anos
atrás. Em sessão especial da Quinzena dos Realizadores, foi exibido
pela primeira vez na França o filme de estréia de Gus Van Sant,
Mala Noche – em cópia digital restaurada que será lançada
em DVD pela MK2 (ou seja: logo logo nos emule da vida). Van Sant
goza de grande reputação na França, em especial depois da vitória
em Cannes por Elefante – todos os seus últimos três filmes
fizeram muito mais sucesso aqui do que nos EUA. Talvez por isso,
quando ele recebeu, antes e depois do filme, uma salva de palmas
de pé longuíssima, parecia realmente emocionado (“nunca fizeram
isso por mim antes”, disse ele ao apresentar o filme). De fato
é uma experiência curiosa parar em meio a um Festival que apresenta
uma série de filmes inéditos recentes e olhar para imagens de
20 anos atrás. Ao invés de prospectar em um primeiro filme o futuro
de um cineasta (como no texto acima e em tantos outros), estamos
aqui olhando para o passado de um cineasta que já se construiu.
Inevitável, portanto, olhar para o formato 1:37 da projeção de
ontem, o mesmo de Elefante e Last Days (só que neste
primeiro filme por ser realizado em 16mm, e não para a TV), e
acabar procurando ali alguns índices de um cinema que viria –
seja os personagens marginais, a temática homossexual, a atração
pela juventude, até mesmo os planos das nuvens já estão no primeiro
filme. O filme de Van Sant estabelece ainda um curioso paralelo
da Costa Oeste ao cinema nova-iorquino que realizava Jim Jarmusch
– pensamos nisso pela incorporação do imigrante como personagem,
mas também pela filmagem extremamente barata e em preto e branco.
Foi em suma, uma noite sui generis, de olhada para o passado
em busca do presente – e nem tanto para o presente em busca do
futuro.
* * *
Ver o filme de Van Sant foi também um necessário
alívio depois da sessão do segundo filme italiano em competição,
L’amico di famiglia, de Paolo Sorrentino. Buscando um humor
ácido, em 45 minutos não arrancou qualquer risada (de mim particularmente,
mas quase de toda a sala lotada), e apenas incomodou com sua estilização
irritante, sua câmera incessante e a completa incapacidade de
gerar qualquer interesse no que se passava na tela. Lamentavelmente,
acabou conseguindo ser o primeiro filme que abandonei no meio
do caminho este ano – porque, afinal, completando uma semana de
Festival, a paciência já não é mais a mesma; e os minutos de descanso
e refeição são aguardados com ansiedade.
* * *
É sempre muito bom ter mais de uma voz sobre filmes
em festivais (motivo pelo qual eu recomendo fortemente que o leitor
acompanhe outras coberturas, entre as quais eu destacaria a de
Kleber Mendonça, no Cinemascópio), até porque se a recepção aos
filmes é algo muito marcado pela disposição pessoal em determinados
momentos, em festivais isso se multiplica. Por isso mesmo, seguem
abaixo as impressões de Pedro Butcher sobre o novo filme de John
Cameron Mitchell – que me deixou bastante desentusiasmado...
“Taí um filme condenado à polêmica não só pelo
tão falado sexo explícito, mas principalmente pela opção de John
Cameron Mitchell de filmar com leveza, com flutuação – o que para
muitos é motivo de cadeia! Shortbus é uma delícia – um
filme 100% propositivo. Pro-positivo. Não há negatividade possível,
os personagens são tristes, mas nunca niilistas, estão sempre
em busca de saídas e as saídas vão se apresentando, nem sempre
de forma definitiva. Mitchell fala de uma utopia que não é bem
uma utopia porque ela é concreta: a liberdade existe, Nova York
ainda vibra, a felicidade se faz completamente possível sobre
os escombros do WTC.”
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