in loco
Diário de Cannes - Dia 8
por Eduardo Valente

Como diz a cantora: "Ooops, eu fiz de novo!" Pois é, não sei se foi um instinto de preservação da sanidade, mas o fato é que não consegui acordar para ver o novo filme de Alejandro González-Iñarritu, hoje às 8 e meia. Cheguei no Palais já bem depois do filme, mas os amigos e colegas de apartamento Kleber Mendonça e Luciane Veras me informaram que uma das perguntas que se ouviu na coletiva foi: “Como você se sente, já que vai ganhar a Palma de Ouro no domingo?”

Como eu tinha dito ontem, as pessoas estavam loucas para serem tomadas de assalto por um filme, e pelo visto foi o de Iñarritu que permitiu isso. Não se trata de unanimidade, porém, como os mesmos dois colegas me relataram não gostar do filme, fazendo até comparações com Crash – que como se sabe levou o Oscar este ano e é considerado um filme dantesco por muitos (eu, inclusive). Conhecendo um pouco Iñarritu, temo que vá estar ao lado dos colegas pernambucanos, que também se consolavam dizendo que Wong Kaw-wai, Lucrecia Martel e Elia Suleiman, juntos num júri, não dariam a Palma de Ouro para o filme. É, de fato o júri pode acabar com vários favoritos da imprensa, como tem acontecido seguidamente – notadamente em 2003 (onde Elefante levou os dois principais prêmios, e os filmes mais festejados – Dogville e Mystic River – nenhum), e no ano passado quando Caché, o favorito dos jornalistas, ficou só com melhor direção – já que o presidente do júri, Emir Kusturica, liderou um movimento contra a Palma para o filme de Haneke.

Aliás, é o segundo ano seguido que eu perco o filme favorito dos jornalistas: ano passado só vi Caché na reprise de domingo – e, aliás, detesto o filme, sobre o quê prometo tentar escrever assim que voltar ao Brasil. Ou seja: esta minha cobertura de Cannes é realmente alternativa, feita do desejo do crítico-espectador, antes de qualquer outro compromisso.

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Como, no entanto, o leitor tem todo o direito (e até dever) de querer se informar sobre os filmes mais falados, começo hoje passando a palavra ao colega Pedro Butcher, que viu Babel e Il Caimano, e relata aqui suas impressões – que espero poder contrapor com as minhas até o começo da semana que vem:

Papel 
A tirania do roteiro, um mal radical do cinema contemporâneo, chega às raias da loucura em Babel, o novo de Alejandro Gonzales-Iñarritu. Para que a complexa engrenagem elaborada pelo escriba Guillermo Arriaga (colaborador de Iñarritu desde Amores brutos) possa ir adiante, que se danem os personagens. Desprovidos de razão, bom senso ou mesmo impulsos irracionais, eles se põem a fazer besteiras inacreditáveis exclusivamente para que as peças de seu quebra-cabeça narrativo possam se encaixar. Iñarritu e Arriaga superdramatizam todas as situações, de modo que não bastam as conseqüências terríveis do tiro que é disparado no Marrocos e que acaba afetando a vida de pessoas nos Estados Unidos, no México e no Japão – o que, por si só, já é desenvolvido de maneira moralista, no pior uso da lógica “causa e efeito”. Vários personagens também carregam consigo um passado trágico, cármico. E tome tragédia. Ou melhor, drama. Kieslowski, no roteiro de O inferno, que foi (mal) filmado por Danis Tanovic e só exibido no Brasil na Mostra de SP, diz que, com a morte de Deus, foi-se também a tragédia. A humanidade estaria condenada ao drama eterno – e talvez seja exatamente isso o que vemos nessa supervalorização do roteiro, que tem dominado os seminários sobre cinema mundo afora e contaminado irremediavelmente o fazer de tantos cineastas de tantos lugares diferentes. Mas talvez o detalhe mais chocante de Babel seja outro. Iñarritu fez um filme “global”, um world movie, lançando olhares exóticos sobre todos os países em que filmou. Mas o olhar mais “exótico” é reservado ao seu próprio país, o México, que surge de uma maneira ainda mais estereotipada do que o Marrocos. Vai entender... 

Il Caimano 
Quando um diretor não sabe muito bem como tratar um assunto, faz um filme sobre um diretor que quer fazer um filme sobre esse mesmo assunto. A metalinguagem, tratada assim, já se esgotou lá no Oito e Meio de Fellini, mas é a esse recurso domina (e estraga) Il Caimano, o tão anunciado filme anti-Berlusconi de Nanni Moretti. O diretor ainda tenta disfarçar fazendo de seu herói um produtor de “filmes b” – que, aliás, ele trata com o maior preconceito. Esse produtor está na pior e, em determinado momento, reconhece, em conversa com amigos, que fez “filmes fascistas”. Moretti põe de lados opostos o “cinema industrial” e o “cinema de exploração” x o “cinema de autor” (o dele), esquecendo que o termo “cinema de autor” foi cunhado justamente para valorizar os diretores do “cinema industrial”. Essa subtrama de Il Caimano parece refletir picuinhas internas do cinema italiano (Moretti x Dario Argento, talvez?) que, sinceramente, não interessam a mais ninguém... 

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Pedro manda ainda duas dicas portuguesas, com certeza:

“Algumas das imagens mais impactantes de Cannes estão em Transe, da portuguesa Teresa Villaverde, atração da Quinzenda dos Realizadores. Sua personagem principal, Sonia, sai de São Petersburgo e atravessa a Europa até chegar a Portugal. Pessimista, Villaverde propõe uma visão infernal da Europa – de exploração sexual, violação, violência, banalidade. São imagens brutais, e que precisam de uma digestão que o frenesi de Cannes não perdoa. A ver. 

Enquanto isso, Mark Peranson, um amigo canadense, conseguiu se infiltrar numa das sessões de mercado de Belle Toujours, de Manoel de Oliveira – que supostamente estavam fechadas à imprensa. Segundo Peranson, vem aí mais uma pérola do mestre: 70 minutos de um belíssimo diálogo e a participação especial de uma galinha. A ver, parte 2...”

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Comment j’ai feté la fin du monde, de Catalin Mitulescu (Romênia/França, 2006) – Un Certain Regard

Ano passado, um filme romeno (A morte do senhor Lazarescu, de Cristi Puiu) levou o principal prêmio da mostra paralela da seleção oficial do Festival de Cannes, num caso raro, aliás, de prêmio ao melhor filme de um Festival. Pois a jovem nova geração romena, que terá amanhã na Quinzena dos Realizadores a exibição do primeiro longa de outro dos seus realizadores premiados em curtas (Corneliu Porumboiu), trouxe mais um nome importante para o cinema contemporâneo atual. Comment j’ai feté la fin du monde é um belíssimo filme de estréia, onde Mitulescu filma com muita paixão a vida dentro de uma família romena, principalmente pelo olhar do casal de filhos (ela, adolescente; ele, criança), em pleno 1989 – ano em que seria derrubado o ditador Ceausescu. É verdade que o filme tem tudo aquilo que se pode esperar desta sinopse: passagem à vida adulta da filha, primeiras experiências do garoto, mistura da vida pequena com a História do país. No entanto, Mitulescu filma tudo com um enorme frescor, e acima de tudo com uma liberdade de linguagem na sua câmera solta e nas suas elipses inesperadas, que conseguem manter a atenção do espectador a cada segundo. E, tratando de um momento realmente especial na vida do seu país, em nenhum momento a mistura da Grande com a Pequena História parece uma intrusão desnecessária ou forçada. Um filme que faz ver que da Romênia podem vir outros belos trabalhos num futuro bem próximo.

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La raison du plus faible, de Lucas Belvaux (França/Bélgica, 2006) – Competição

Atualmente em cartaz no Brasil com sua trilogia, realizada em 2002, Lucas Belvaux parece ter feito bom uso do treino realizado naqueles três filmes, onde trabalhou com gêneros diferentes. Seu novo trabalho é um filme só, mas que mistura dentro dele vários registros de gêneros diferentes – e o que é melhor, todos eles bastante bem resolvidos. Ao final, principalmente a partir do personagem de Pirmez (interpretado pelo próprio Belvaux, com grande força), ganha ares de tragédia contemporânea e um peso que seu começo rotineiro, quase de comédia de situações, certamente não deixava antever. Revela então a força da sua reflexão sobre uma classe proletária desesperada, sem nada a perder, e disposta a todo sacrifício necessário pelo direito a um quinhão de sonho. Um filme talvez quieto demais, sutil demais para causar mais reações fortes no meio do circo de Cannes, mas que certamente representa um grande passo na direção certa para o diretor.

 


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