in loco
Diário de Cannes - Dia 7
por Eduardo Valente

Sonhos de Peixe, de Kirill Mikhanovsky (Rússia/EUA/Brasil, 2006) – Semana da Crítica

Se Southland Tales foi o grande choque da primeira metade do Festival, para os brasileiros houve uma outra surpresa: o longa de que ninguém tinha ouvido falar no Brasil quando da sua seleção para a Semana da Crítica, e que surgiu com seu título em português, creditado ao Brasil e com um nome russo desconhecido como diretor, acabou se revelando um agradabilíssimo filme de estréia. As expectativas podiam ser as piores: afinal, filmado com não-atores no litoral do Rio Grande do Norte, por um russo-americano sem maiores vivências brasileiras (pelo menos de longa duração), havia muito medo de uma “macumba para turista” onde o Brasil entrava com os personagens e a paisagem, e pouco mais. Pois o filme de Mikhanovsky revela um olho (e, essencial também, um ouvido) tão atento para uma história autenticamente brasileira como poucos filmes autenticamente nacionais podem alegar ter conseguido apresentar nos últimos anos. Se fosse brasileiro, certamente Mikhanovsky estaria colocado na mesma linha recente que nos deu os filmes de Karim Ainouz, Marcelo Gomes e Sérgio Machado (anotadas as diferenças entre estes) – o que não deixa de dar uma certa coerência à sua seleção em Cannes, mesmo local de estréia do filme dos três acima citados. Na verdade, a melhor definição do filme, como bem notou Pedro Butcher, seria uma filmagem de A Máquina com cores realistas (sem deixar de lado o imaginário dos personagens, nem buscando um naturalismo sufocante – e, muito mais importante, com alguma vida e respiração interna). Fora estas semelhanças, para os que conhecem um pouco do novo projeto de Karim Ainouz (Rifa-me), impressiona também uma mesma postura na aproximação da câmera (e dos microfones/trilha sonora) com o objeto filmado. E também é impossível deixar de pensar, levando-se em conta o universo dos pescadores do Nordeste brasileiro, no filme que Orson Welles filmou no Ceará em 1942. Ao fim e ao cabo, porém, importam menos todas essas aproximações e sim confirmar que Sonhos de Peixe é um dos melhores filmes brasileiros recentes – ainda que não seja exatamente um filme brasileiro. Fomos bem representados.

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Flandres, de Bruno Dumont (França, 2006) – Competição

Para quem viu os filmes anteriores de Dumont, principalmente A Vida de Jesus e A Humanidade, talvez haja alguma surpresa em saber que Flandres é, por assim dizer, um filme de guerra. No entanto, se superamos esta primeira informação, o filme confirma tudo que se poderia esperar de um filme de guerra de Bruno Dumont – e se isso significa uma maneira bastante peculiar de filmar o mundo e as paisagens no uso do scope, por exemplo, também significa uma descida ao inferno do Homem como animal. Claro, ética e moralmente, nada de errado ou a opor ao cinema de Dumont. Por outro lado, não se pode negar nem o desinteresse pessoal deste crítico por grande parte do que se pretende com ele, como principalmente a extrema limitação de sua proposta. A única coisa curiosa que descobrimos com este filme é que Dumont filma os crimes de guerra como um ato mais humano do que as cenas de sexo – e isso basta para quem quiser entender ao que nos referimos com as limitações citadas acima. Porém, comparado ao detestável filme anterior de Dumont (o pouco visto Twentynine palms), Flandres chega a ser um alívio – ainda mais pelo final curiosamente “otimista” deste novo filme.

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Iklimler, de Nuri Bilge Ceylan (Turquia/França, 2006) – Competição
Meurtrières, de Patrick Grandperret (França, 2006) – Un Certain Regard
Bled Number One, de Rabah Ameur-Zaïmeche (França/Argélia, 2006) Un Certain Regard
Honor de Cavalleria
, de Albert Serra (Espanha, 2006) – Quinzena dos Realizadores

É claro que filmes são obras únicas, cada um com a sua especificidade de projeto e suas qualidades e defeitos – e como tal devem ser tratados. No entanto, tentando cobrir um Festival como Cannes, com o grau de trabalho a ser feito, e vendo quatro a cinco filmes por dia, é inevitável que se acabe traçando algumas pontes entre os filmes, na medida em que se vai tendo contato com eles. Como não se pretende mesmo esgotar os filmes com estas breves primeiras impressões daqui – ainda mais com a consciência da necessidade de voltar àqueles que pedem um olhar mais tranqüilo – me parece mais interessante, ao aproximar-se destes quatro filmes acima, notar o quanto eles representam uma certa tendência do chamado “cinema de autor” contemporâneo. No ano passado, aliás, no seu debate pós-Cannes, a redação da Cahiers du Cinema já havia observado o quanto estava em falta o cinema narrativo-psicológico, ou seja, aquele cinema cuja matriz principal seria o cinema clássico americano (mas também um certo cinema francês), e no qual as palavras “trama” e “personagem” fazem especial sentido. A ver pela seleção deste ano, as observações seguem valendo.

Para os que viram Distante (Loin), do turco Ceylan, exibido em competição em 2003 e ganhador de dois prêmios em Cannes, Iklimler é uma continuação natural da sua obra. Mesma inspiração estilística, notadamente antonioniana – aqui voltado para uma relação amorosa. Se este semelhança pode servir como conforto aos “autoristas” que tenham gostado de Distante (eu mesmo via qualidades interessantes no filme),  para quem busque um cineasta se desafiando, há pouco a tirar de Iklimler. Pior ainda: se a trama (olha ela aí), ou a ausência desta, fazia algum sentido em Distante pelo próprio estado natural dos personagens, é difícil não ver sua aplicação em Iklimler como afetação de estilo. Na negação de qualquer psicologismo que motive a relação amorosa do casal protagonista, Ceylan aposta todas as suas fichas não tanto numa observação do universo destes personagens, e sim na sobreposição da sua visão de autor sobre eles (ou seja: dá-lhe enquadramentos “ricos”, dá-lhe efeitos sonoros “significantes”). O resultado são 90 minutos de contemplação muito mais sobre a qualidade do diretor do que sobre o material à sua frente. Há aqueles que apreciam este cinema – e Ceylan sabe disso. Não é o nosso caso.

Na mostra paralela da seleção oficial, a Un Certain Regard, dois filmes representam diferentes focos desta mesma tendência ao cinema da narrativa solta: em Meurtrières, o francês Grandperret (cineasta já de alguns longas, que não filmava para cinema há 10 anos) pega um argumento de Maurice Pialat (o filme é produzido pela viúva deste) sobre um fait divers famoso na França dos anos 60, no qual duas jovens que vagam pela França, depois de se conhecerem numa instituição psiquiátrica, acabam assassinando um homem. Grandperret abre o filme com o imediato pós-crime, e depois reconta a história em flashback. Seu ponto de vista? “Não se pode explicar um assassinato, por isso vamos apenas ver as circunstâncias que as levam até o ato em si”. Se a teoria já não é lá muito nova, muito menos interessante é a prática como Grandperret a expõe: tendo mostrado de saída onde vamos terminar, e nos dizendo constantemente que o acúmulo daquelas cenas não levará a algum sentido próprio, o que nos resta é hora e meia de espera até o momento em que o crime acontece – nenhuma relação com as personagens, portanto, por mais que as duas atrizes sejam bastante interessantes nos papéis. De novo, da fuga da trama e da construção de personagens em si, sobra muito pouco para nós.

No filme do franco-argelino Ameur-Zaïmeche a questão é outra. Realizador do bem considerado Wesh Wesh, ele retoma aqui o mesmo personagem (interpretado por ele mesmo), fazendo questão de notar que este novo filme tanto pode se passar antes quanto depois do outro (em si mesmo uma indicação da falta de causalidade no perfil dos personagens). Kamal, o personagem principal (embora ele seja muito mais uma figura do que um personagem), volta para sua Argélia natal, deportado da França, e lá vai para sua vila de origem, no interior. O filme se compõe, a partir daí, de uma série de situações, não necessariamente conectadas de nenhuma forma para além da simples presença de Kamal, em que ele vaga por entre outras figuras da vila. Aqui, o que se busca é muito mais a apreensão da atmosfera de um país onde Kamal é estrangeiro e nativo ao mesmo tempo, entre a tradição, a modernidade, questões religiosas, de gênero, etc. No ritmo dolente que o diretor impõe, é inegável que ele consegue alguns belos momentos. Mas, de novo, fica a pergunta constante: por que o medo de impor a Kamal uma narrativa de fato? Captar o espaço, por mais rico exercício que se revele, sofre de inúmeras limitações dentro do tratamento que Ameur-Zameïche dá ao filme – e ele nunca consegue chegar a escapar deles.

Finalmente, dentro da Quinzena dos Realizadores, temos o filme que mais radicalmente escapa dos limites de uma narrativa ficcional ou do estabelecimento de personagens. O espanhol Honor de Cavalleria não é exatamente uma adaptação de Don Quixote, e sim uma abstração em cima das figuras de Quixote e Sancho Pança. No filme de estréia de Serra, dois não-atores catalães com mínimos elementos de figurino e dois cavalos, simplesmente vagam por campos espanhóis, aparentemente sem destino. Pouco se falam, e quando fazem, pouco revelam de si mesmos. Há a irrupção repentina de alguns outros personagens em cena, eventualmente, mas mesmo nestas situações não chegamos a acompanhar nenhuma trama, pois elipses inexplicadas fazem com que eles sumam e voltem de cena. Soa radical, mas é deste radicalismo de proposta que Honor de Cavalleria tira sua força: aqui sim a opção pela não construção dos personagens dentro de uma trama faz absoluto sentido, por ser todo o projeto em si uma aposta na visualidade e no som (onde o uso do catalão como idioma é especialmente forte). É, portanto, intrínseco que o filme assuma a forma narrativa por ele escolhido – forma esta que se não chega a garantir o sucesso pleno do projeto, pelo menos nos faz acreditar nas suas escolhas. Honor comprova, de novo, que o problema do excesso do uso da narrativa não-causal não é intrínseco a uma forma de filmar, mas sim do uso indiscriminado desta, sem que se perceba no filme porque ela é a melhor alternativa. Ao contrário dos outros três exemplos, portanto, é o único que nos satisfaz como construção.

 

 

 


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