in loco
Diário de Cannes - Dia 6
por Eduardo Valente
Chegamos à metade do Festival – e é hora de fazer
um breve balanço (seja dos filmes, seja das horas mal dormidas
ou das refeições mal comidas). É hora também de pegar fôlego pro
sprint final.
* * *
Na corrida pela Palma de Ouro, pode-se dizer que ainda não surgiu
um grande favorito destacado. Todos os autores com algum nome
em Cannes (Almodóvar, Kaurismaki, Dumont, Nuri Bilge Ceylan, Moretti,
Loach) cumpriram exatamente o que se esperava deles, fazendo filmes
que seus fãs adoraram, seus detratores não gostaram (Almodóvar
menos, até porque hoje seus detratores são poucos) – mas, no geral,
sem maiores surpresas, com a impressão que uma Palma para Almodóvar
ou Kaurismaki seria pelo conjunto da obra, e para os outros seria
uma extravagância. Já os diretores mais "novos"
(Andrea Arnold, Linklater, Nicole Garcia, Lou Ye), se não decepcionaram,
também não fizeram o arrasa-quarteirão que precisariam fazer para
ganhar uma Palma por cima dos grandes nomes. O que, aliás, dá
uma certa tristeza de não ter visto Bellochio ou Friedkin, os
autores que ousaram até agora, na Competição.
A impressão reinante é que qualquer filme que
venha com força no apronto final pode levar a parada (e as maiores
expectativas na Croisette são por Sofia Coppola, claro – mas também
se sente que Rachid Bouchareb, Lucas Belvaux ou Pedro Costa podem
surpreender; infelizmente, o mesmo valendo para Iñarritú). O único
filme que saiu do script até agora foi mesmo Southland
Tales - mas é difícil imaginar que qualquer grupo de mais
de duas pessoas concorde sobre ele o suficiente para dar algum
prêmio.
* * *
Aliás, valem alguns comentários a mais sobre o
filme de Richard Kelly, visto que foi o único até agora sobre
o qual pude escrever imediatamente ao sair da sessão, sem tempo
de decantação (seja pessoal, seja de respostas de fora): o amigo
Leo Sette (nosso correspondente parisiense) anota que, na semana
passada, o jornal Libération também havia chamado o filme de OVNI
(antes mesmo de ver o filme, que ficou pronto – ou não ficou pronto,
segundo as más línguas – em cima da hora), o que no mínimo quebraria
a lógica do meu “por essa ninguém esperava” na coluna de ontem.
Anotada a observação necessária, cabe dizer que na imprensa “comercial”,
que circula diariamente em Cannes, o filme foi devidamente crucificado
(como, não custa lembrar, aconteceu com Donnie Darko em
Sundance, e com tantos filmes em Cannes – último caso, Brown
Bunny, claro). Esta rejeição é a resposta-padrão da crítica
canina (obrigado pela expressão, Pedro Butcher!) ao que sai do
esperado. Se Vincent Gallo foi chamado de exibicionista e egocêntrico,
Kelly é o pretensioso e juvenil da vez. Que fique bem claro: ambicioso,
Southland Tales certamente é – e sabe disso (segundo The
Rock, na coletiva, Kelly é um cara ambicioso e “ballsy” – “os
motivos pelos quais quis trabalhar com ele”). E que o filme realmente
parece ter sido terminado às pressas, e poderia ganhar bastante
com um trabalho a mais na montagem, disso não há dúvidas. Mas,
ainda assim, reforço a primeira impressão: tem mais coisas acontecendo
ali naquele caos que Kelly coloca na tela (palavras dele: “não
dá para não ser confuso para falar do mundo de hoje, porque ele
é muito confuso também”) do que na maior parte do cinema exibido
em Cannes. E melhor um cinema de pretensão (e não pretensioso),
que sem pretensão alguma, ou já completamente decantado
nas suas qualidades e defeitos.
* * *
Até agora meu cansaço físico foi responsável
pela desistência de ir ver um filme da competição (Selon Charlie,
de Nicole Garcia) – curiosamente um dia em que vários amigos tomaram
a mesma decisão. Para quem não sabe, a principal cabine de imprensa
de filme da competição, todo dia, se dá às 8 e meia da manhã.
Como o corpo tem um limite de dias seguidos em que consegue acordar
às 7 horas e ir ao cinema, mais cedo ou mais tarde se escolhe
um filme-“boi de piranha” (no caso, filmes de diretores que não
nos causam maiores excitações) para descansar um pouco mais -
e ficar torcendo para ele não ser a surpresa que vai ganhar
a Palma de Ouro ou nada do gênero. Gentilmente (mas também
escaldado por anos como o de Rosetta, onde quase todo mundo
tinha tirado este filme pra descansar e não sabia o que escrever
quando ele ganhou a Palma de Ouro), o Festival reprisa todos os
filmes da Competição no domingo que vem, dia do anúncio das Palmas.
Quem sabe, vejo Selon Charlie então.
* * *
Este ano eu desisti previamente de mais dois filmes
das 8 e meia, só que de diretores que adoro: Il Caimano,
de Nanni Moretti; e Marie Antoinette, de Sofia Coppola.
Mas, explica-se a tática: como tem se tornado cada vez
mais comum, estes dois filmes estréiam na França nesta quarta,
ainda durante o Festival (assim como já estreou, aliás, Volver).
O presidente do Festival, Gilles Jacob, falava disso, aliás, na
entrevista que deu a Cahiers du Cinema, como um dos problemas
que quer rever no futuro. Afinal, de fato, se para filmes de abertura
ou fora de competição (como Da Vinci ou o X-Men 3),
não faz muita diferença estrearem com o Festival em andamento,
fazendo aqui uma avant-première de luxo, não deixa
de ser esquisito ter filmes em competição passando
em toda a França antes mesmo das Palmas serem anunciadas. Ou seja:
domingo eles já estão passando aqui mesmo em Cannes, fora do Palais.
Sabendo disso, e precisando do máximo de descanso, optei por não
fazer estes dois filmes de diretores estimados passarem pela provação
de serem vistos às 8 e meia - não sou tão ansioso que não possa
esperar mais uns dias para vê-los com calma. Fica o aviso para
os leitores fiéis, que certamente esperavam comentários sobre
eles, que só verei os dois ou na reprogramação de domingo, ou
na semana que vem, em Paris.
Falando em Paris, outro aviso: lá também é reprisada a seleção
da Quinzena e do Un Certain Regard na semana que vem. Estou contando
com isso para ver vários dos filmes que não dava para humanamente
encaixar na programação daqui – com isso, certamente vai haver
uma edição especial do diário na semana pós-Cannes.
* * *
The Host, de Bong Joon-ho (Coréia do Sul,
2006) – Quinzena dos Realizadores
Luxury Car, de
Wang Chao (China/França, 2006) – Un Certain Regard
Shortbus, de John Cameron Mitchell (EUA, 2006) –
Fora de Competição
Um dos prazeres dos festivais é acompanhar a carreira
de alguns cineastas ainda em seus primeiros passos, mas já acompanhados
de perto por terem chamado a atenção logo no primeiro ou segundo
filme. Foi o caso destes três filmes - no geral, passos bastante
interessantes e reveladores de seus diretores (em ordem decrescente
de qualidade, na minha opinião).
O
primeiro é de um diretor ainda não visto em cinema no Brasil –
infelizmente, pois seu segundo longa, Memories of Murder (2003),
é um dos grandes filmes policiais feitos em qualquer lugar do
mundo, em pelo menos dez anos. Este seu novo trabalho é um divertidíssimo
filme de horror (o humor negro é uma das marcas do cinema de Bong),
que traz de volta seu domínio pleno da linguagem do cinema de
gênero, com a capacidade de atingir um alto grau de ultrapassagem
de qualquer fronteira que este possa aparentemente impor. Curiosamente,
com efeitos digitais de primeira feitos nos EUA (por uma companhia
de dissidentes da Industrial Light and Magic de George Lucas),
o filme parece também poder ensinar (ou, no mínimo relembrar)
para vários diretores hollywoodianos recentes que um filme
de monstro pode ser isso e muito mais. Grandes personagens, originalidade
(qual foi a última vez- ou a primeira, mesmo - que se viu
uma cena de funeral coletivo de vítimas de um monstro de
filmes de criaturas?), e acima de tudo uma capacidade de colocar
vários dedos em feridas (como o retrato que faz do Estado
na condução da crise - entre inepto, na melhor das
hipóteses, e corrupto e mal intencionado, na pior) mostram
que Bong Joon-ho é um nome que veio mesmo para ficar.
O segundo filme é de um cineasta chinês - cujos
dois primeiros filmes foram exibidos no Brasil (na Mostra de São
Paulo e no Festival do Rio apenas, respectivamente). Este seu
novo trabalho adiciona algumas questões interessantes – principalmente
no trabalho do conflito de gerações e dos ambientes urbano e rural
(chegando a lembrar os temas e a maneira de tratá-los – ainda
que não o estilo visual – de Yasujiro Ozu). Fala da China de hoje
com um cuidado bastante apreciável com seus personagens, não caindo
em nenhum momento na facilidade dos estereótipos, e sem nenhuma
pressa de contar sua história (mas, ao mesmo tempo, sem cair na
dolência estilosa e desnecessária, tão em voga em alguns “filmes
de Festival”). É um belo pequeno filme, como aliás já eram seus
dois primeiros (mais o primeiro do que o segundo), de um diretor
que parece trabalhar sempre com tons e notas bem baixas, com considerável
talento.
Finalmente, temos o aguardado segundo filme do
diretor de Hedwig – Rock, Amor e Traição (Hedwig and
the Angry Inch), razoável sucesso no circuitinho mundial (Brasil
incluído). Shortbus parte de um conceito interessante (colocar
o sexo explícito como parte essencial de uma narrativa não-pornô),
e de um processo de realização idem (criação de uma “comunidade”
com o elenco de maneira a permitir que a intimidade entre eles
se criasse naturalmente, assim como o roteiro do filme). Infelizmente,
conceito e processo não bastam para que o filme, o produto final,
resulte interessante. E há uma óbvia perda entre a conceituação
deste projeto e o filme que vemos na tela. Shortbus, justamente
pela fraqueza de seu roteiro, personagens e encenação, acaba sendo
pouco mais do que uma curiosidade – que parece satisfeita em contentar
aqueles que já querem gostar só pelo tal conceito, e desagradar
os que não querem pelo mesmo motivo. O filme, para ficar na expressão
infeliz cunhada por Zagallo sobre o gol numa partida de futebol,
parece ser só um detalhe – mas, como no futebol, nos parece um
detalhe um tanto importante. Que aqui revela muito mais as limitações
de Mitchell do que suas capacidades. Mas, revelar limitações
dos diretores também é um papel interessante dos
festivais.
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