in loco
Diário de Cannes - Dia 6
por Eduardo Valente

Chegamos à metade do Festival – e é hora de fazer um breve balanço (seja dos filmes, seja das horas mal dormidas ou das refeições mal comidas). É hora também de pegar fôlego pro sprint final.
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Na corrida pela Palma de Ouro, pode-se dizer que ainda não surgiu um grande favorito destacado. Todos os autores com algum nome em Cannes (Almodóvar, Kaurismaki, Dumont, Nuri Bilge Ceylan, Moretti, Loach) cumpriram exatamente o que se esperava deles, fazendo filmes que seus fãs adoraram, seus detratores não gostaram (Almodóvar menos, até porque hoje seus detratores são poucos) – mas, no geral, sem maiores surpresas, com a impressão que uma Palma para Almodóvar ou Kaurismaki seria pelo conjunto da obra, e para os outros seria uma extravagância. Já os diretores mais "novos" (Andrea Arnold, Linklater, Nicole Garcia, Lou Ye), se não decepcionaram, também não fizeram o arrasa-quarteirão que precisariam fazer para ganhar uma Palma por cima dos grandes nomes. O que, aliás, dá uma certa tristeza de não ter visto Bellochio ou Friedkin, os autores que ousaram até agora, na Competição.

A impressão reinante é que qualquer filme que venha com força no apronto final pode levar a parada (e as maiores expectativas na Croisette são por Sofia Coppola, claro – mas também se sente que Rachid Bouchareb, Lucas Belvaux ou Pedro Costa podem surpreender; infelizmente, o mesmo valendo para Iñarritú). O único filme que saiu do script até agora foi mesmo Southland Tales - mas é difícil imaginar que qualquer grupo de mais de duas pessoas concorde sobre ele o suficiente para dar algum prêmio.

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Aliás, valem alguns comentários a mais sobre o filme de Richard Kelly, visto que foi o único até agora sobre o qual pude escrever imediatamente ao sair da sessão, sem tempo de decantação (seja pessoal, seja de respostas de fora): o amigo Leo Sette (nosso correspondente parisiense) anota que, na semana passada, o jornal Libération também havia chamado o filme de OVNI (antes mesmo de ver o filme, que ficou pronto – ou não ficou pronto, segundo as más línguas – em cima da hora), o que no mínimo quebraria a lógica do meu “por essa ninguém esperava” na coluna de ontem. Anotada a observação necessária, cabe dizer que na imprensa “comercial”, que circula diariamente em Cannes, o filme foi devidamente crucificado (como, não custa lembrar, aconteceu com Donnie Darko em Sundance, e com tantos filmes em Cannes – último caso, Brown Bunny, claro). Esta rejeição é a resposta-padrão da crítica canina (obrigado pela expressão, Pedro Butcher!) ao que sai do esperado. Se Vincent Gallo foi chamado de exibicionista e egocêntrico, Kelly é o pretensioso e juvenil da vez. Que fique bem claro: ambicioso, Southland Tales certamente é – e sabe disso (segundo The Rock, na coletiva, Kelly é um cara ambicioso e “ballsy” – “os motivos pelos quais quis trabalhar com ele”). E que o filme realmente parece ter sido terminado às pressas, e poderia ganhar bastante com um trabalho a mais na montagem, disso não há dúvidas. Mas, ainda assim, reforço a primeira impressão: tem mais coisas acontecendo ali naquele caos que Kelly coloca na tela (palavras dele: “não dá para não ser confuso para falar do mundo de hoje, porque ele é muito confuso também”) do que na maior parte do cinema exibido em Cannes. E melhor um cinema de pretensão (e não pretensioso), que sem pretensão alguma, ou já completamente decantado nas suas qualidades e defeitos.

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Até agora meu cansaço físico foi responsável pela desistência de ir ver um filme da competição (Selon Charlie, de Nicole Garcia) – curiosamente um dia em que vários amigos tomaram a mesma decisão. Para quem não sabe, a principal cabine de imprensa de filme da competição, todo dia, se dá às 8 e meia da manhã. Como o corpo tem um limite de dias seguidos em que consegue acordar às 7 horas e ir ao cinema, mais cedo ou mais tarde se escolhe um filme-“boi de piranha” (no caso, filmes de diretores que não nos causam maiores excitações) para descansar um pouco mais - e ficar torcendo para ele não ser a surpresa que vai ganhar a Palma de Ouro ou nada do gênero. Gentilmente (mas também escaldado por anos como o de Rosetta, onde quase todo mundo tinha tirado este filme pra descansar e não sabia o que escrever quando ele ganhou a Palma de Ouro), o Festival reprisa todos os filmes da Competição no domingo que vem, dia do anúncio das Palmas. Quem sabe, vejo Selon Charlie então.

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Este ano eu desisti previamente de mais dois filmes das 8 e meia, só que de diretores que adoro: Il Caimano, de Nanni Moretti; e Marie Antoinette, de Sofia Coppola. Mas, explica-se a tática: como tem se tornado cada vez mais comum, estes dois filmes estréiam na França nesta quarta, ainda durante o Festival (assim como já estreou, aliás, Volver). O presidente do Festival, Gilles Jacob, falava disso, aliás, na entrevista que deu a Cahiers du Cinema, como um dos problemas que quer rever no futuro. Afinal, de fato, se para filmes de abertura ou fora de competição (como Da Vinci ou o X-Men 3), não faz muita diferença estrearem com o Festival em andamento, fazendo aqui uma avant-première de luxo, não deixa de ser esquisito ter filmes em competição passando em toda a França antes mesmo das Palmas serem anunciadas. Ou seja: domingo eles já estão passando aqui mesmo em Cannes, fora do Palais.
Sabendo disso, e precisando do máximo de descanso, optei por não fazer estes dois filmes de diretores estimados passarem pela provação de serem vistos às 8 e meia - não sou tão ansioso que não possa esperar mais uns dias para vê-los com calma. Fica o aviso para os leitores fiéis, que certamente esperavam comentários sobre eles, que só verei os dois ou na reprogramação de domingo, ou na semana que vem, em Paris.
Falando em Paris, outro aviso: lá também é reprisada a seleção da Quinzena e do Un Certain Regard na semana que vem. Estou contando com isso para ver vários dos filmes que não dava para humanamente encaixar na programação daqui – com isso, certamente vai haver uma edição especial do diário na semana pós-Cannes.

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The Host, de Bong Joon-ho (Coréia do Sul, 2006) – Quinzena dos Realizadores
Luxury Car, de Wang Chao (China/França, 2006) – Un Certain Regard
Shortbus, de John Cameron Mitchell (EUA, 2006) – Fora de Competição

Um dos prazeres dos festivais é acompanhar a carreira de alguns cineastas ainda em seus primeiros passos, mas já acompanhados de perto por terem chamado a atenção logo no primeiro ou segundo filme. Foi o caso destes três filmes - no geral, passos bastante interessantes e reveladores de seus diretores (em ordem decrescente de qualidade, na minha opinião).

O primeiro é de um diretor ainda não visto em cinema no Brasil – infelizmente, pois seu segundo longa, Memories of Murder (2003), é um dos grandes filmes policiais feitos em qualquer lugar do mundo, em pelo menos dez anos. Este seu novo trabalho é um divertidíssimo filme de horror (o humor negro é uma das marcas do cinema de Bong), que traz de volta seu domínio pleno da linguagem do cinema de gênero, com a capacidade de atingir um alto grau de ultrapassagem de qualquer fronteira que este possa aparentemente impor. Curiosamente, com efeitos digitais de primeira feitos nos EUA (por uma companhia de dissidentes da Industrial Light and Magic de George Lucas), o filme parece também poder ensinar (ou, no mínimo relembrar) para vários diretores hollywoodianos recentes que um filme de monstro pode ser isso e muito mais. Grandes personagens, originalidade (qual foi a última vez- ou a primeira, mesmo - que se viu uma cena de funeral coletivo de vítimas de um monstro de filmes de criaturas?), e acima de tudo uma capacidade de colocar vários dedos em feridas (como o retrato que faz do Estado na condução da crise - entre inepto, na melhor das hipóteses, e corrupto e mal intencionado, na pior) mostram que Bong Joon-ho é um nome que veio mesmo para ficar.

O segundo filme é de um cineasta chinês - cujos dois primeiros filmes foram exibidos no Brasil (na Mostra de São Paulo e no Festival do Rio apenas, respectivamente). Este seu novo trabalho adiciona algumas questões interessantes – principalmente no trabalho do conflito de gerações e dos ambientes urbano e rural (chegando a lembrar os temas e a maneira de tratá-los – ainda que não o estilo visual – de Yasujiro Ozu). Fala da China de hoje com um cuidado bastante apreciável com seus personagens, não caindo em nenhum momento na facilidade dos estereótipos, e sem nenhuma pressa de contar sua história (mas, ao mesmo tempo, sem cair na dolência estilosa e desnecessária, tão em voga em alguns “filmes de Festival”). É um belo pequeno filme, como aliás já eram seus dois primeiros (mais o primeiro do que o segundo), de um diretor que parece trabalhar sempre com tons e notas bem baixas, com considerável talento.

Finalmente, temos o aguardado segundo filme do diretor de Hedwig – Rock, Amor e Traição (Hedwig and the Angry Inch), razoável sucesso no circuitinho mundial (Brasil incluído). Shortbus parte de um conceito interessante (colocar o sexo explícito como parte essencial de uma narrativa não-pornô), e de um processo de realização idem (criação de uma “comunidade” com o elenco de maneira a permitir que a intimidade entre eles se criasse naturalmente, assim como o roteiro do filme). Infelizmente, conceito e processo não bastam para que o filme, o produto final, resulte interessante. E há uma óbvia perda entre a conceituação deste projeto e o filme que vemos na tela. Shortbus, justamente pela fraqueza de seu roteiro, personagens e encenação, acaba sendo pouco mais do que uma curiosidade – que parece satisfeita em contentar aqueles que já querem gostar só pelo tal conceito, e desagradar os que não querem pelo mesmo motivo. O filme, para ficar na expressão infeliz cunhada por Zagallo sobre o gol numa partida de futebol, parece ser só um detalhe – mas, como no futebol, nos parece um detalhe um tanto importante. Que aqui revela muito mais as limitações de Mitchell do que suas capacidades. Mas, revelar limitações dos diretores também é um papel interessante dos festivais.

 

 


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