in loco
Diário de Cannes - Dia 5
por Eduardo Valente

Southland Tales, de Richard Kelly (EUA, 2006) - Competição

Ninguém pode dizer que esperava por essa: Southland Tales, o segundo filme do americano Richard Kelly (que virou um fenômeno bastante “escondido” com sua estréia, Donnie Darko – que, confesso, não vi) certamente é a explosão do Festival de Cannes até agora. Explosão, em seu duplo sentido: certamente muitos o odiaram, assim como certamente alguns gostaram bastante. O inegável é que ele saiu do script, numa Cannes dividida até agora por autores nos dando aquilo que esperávamos (sendo que isso tanto pode ser bom – Almodóvar – quanto ruim – Loach) e filmes de jovens diretores que aspiram ao clube dos “autores” por caminhos claramente distintos (Linklater, Ceylan, Andrea Arnold), mas ainda assim previsíveis. Bom, Kelly certamente chutou a porta com Southland Tales, num movimento bastante parecido com o de Quentin Tarantino com Pulp Fiction, doze anos atrás (uau, o tempo passa). É verdade que Southland Tales vai ser bem menos simples de processar, até por sua inserção no esquema da grande produção, mas inegavelmente seu impacto foi notável, causando a primeira “confusão” massiva entre críticos e jornalistas na saída da sessão.

E o que é Southland Tales? Ele certamente desafia definições simples: um épico futurista sobre o fim do mundo (cheio de conexões com o nosso presente, claro), mas também uma comédia rasgada e satírica (praticamente todos os mais importantes “graduandos-coadjuvantes” do Saturday Night Live mais recente vão passando pelo filme), mas principalmente é um universo em si mesmo – com mais do que apenas uma semelhança com o Duna, de David Lynch. Kelly não economiza na duração (duas horas e quarenta) na quantidade de personagens (inacreditável), nem nas histórias que se cruzam. Mas também não economiza, acima de tudo, nas idiossincracias deste seu universo paralelo que parece vagar o tempo todo entre a mais rasgada comédia insana e o filme de ação/espionagem/conspiração/política. Uau, difícil de descrever mesmo. Mais dificil ainda de imaginar quem aceitou financiar esta aventura nada barata, nem um pouco realista ou simples de entender – mesmo tendo The Rock, Sarah Michelle Geller e Justin Timberlake no elenco.

E o filme? Bom, você leva pelo menos uma meia hora simplesmente aceitando as regras do jogo de Kelly, jogo que começa à toda, sem muito descanso. O incômodo (positivo, neste sentido) é inegável. Depois de um tempo, uma vez que se embarque no filme (ou não – várias desistências foram vistas na sala), ele começa a desenvolver uma relação com o espectador. Algumas de suas piadas são absolutamente brilhantes, seu trabalho visual-sonoro muitas vezes impressiona, e acima de tudo há a estranha sensação de se estar vendo um filme tão radicalmente inserido no seu tempo, e ao mesmo tempo tão completamente “codificado”, que parece mesmo uma fantasia surreal feita durante alguma época de ditadura e censura. Sim, há semelhanças possíveis com alguns universos paralelos que conhecemos bem no Brasil (Brasil Ano 2000, Pindorama, etc), feitas todas as adaptações culturais e de época é claro. Há acima de tudo a sensação do desejo de se criar um mundo à parte que, muito parecido com o que acontece com alguns trabalhos de David Lynch (Duna e Twin Peaks em especial, mas não somente), vai ter um séquito de seguidores no futuro, que adorarão cada personagem e detalhe. Inclusive com a aparente piada de começar por uma pare IV (Star Wars, alguém?), que logo desvenda bastante da linguagem do filme ao sabermos que as três primeiras partes da história estão sendo publicadas como graphic novels neste momento.
De fato, não é tanto um grande filme (desigual, eventualmente entediante e auto-centrado ao extremo) quanto um grande acontecimento, em especial dentro do Festival deste ano. Um filme que vai dar o que falar...

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Aliás, uma nota importante: Southland Tales foi exibido em Cannes numa projeção digital de uma qualidade impressionante, que deixou ver que realmente falta muito pouco – e certamente não são mais barreiras tecnológicas – para que a película seja aposentada como sistema de exibição.

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Lês lumières du faubourg, de Aki Kaurismaki (Finlândia, 2006)

Se Kelly chocou boa parte dos que viram seu extremamente ambicioso (ainda que nem sempre bem sucedido) filme, Kaurismaki não surpreendeu ninguém com mais um estudo sobre a possibilidade de convivência humana mesmo em meio aos tempos mais duros que a modernidade impõe. Só que nesta falta de surpresas há o lado bom e o lado ruim: o lado bom certamente fica por conta do trabalho sempre adorável do diretor com os atores, os enquadramentos, as cores, as luzes, e uma estética que chega tão perto do básico do cinema (lembrando sempre e cada vez mais o cinema mudo – que aliás ele usou em Juha), ao mesmo tempo que permite um olhar extremamente sofisticado sobre a contemporaneidade (aqui representada pelo mafioso russo que se define como um businessman, não um assassino). O lado ruim é que, para quem quer que conheça Kaurismaki, não vê neste novo filme nada que já não tenha visto antes, talvez melhor (O Homem sem Passado, principalmente). É uma das questões que tem dominado Cannes: a capacidade dos autores existirem dentro dos limites de sua própria “autoria”. Trata-se de um belo filme, com chances até de levar algo de grande (já que Kaurismaki está na mesma categoria de Almodóvar de grandes diretores ainda sem Palma de Ouro), mas deve-se confessar que o filme de Kelly (talvez até inferior, embora não sirva a nenhum sentido este tipo de comparação) certamente traz mais vitalidade para o Festival e para o cinema.

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Red Road, de Andrea Arnold (Inglaterra/Dinamarca, 2006) – Competição

Red Road foi a grande surpresa na lista da Competição este ano, acima de tudo por ser o único filme de uma estreante. A história que circula nas revistas diárias da Croisette é que ela teria preferido aceitar o convite da Quinzena dos Realizadores ao invés da Un Certain Regard, convencendo assim os organizadores da Seleção Oficial a convida-la para a Competição. Esta “briga” pelo filme dá a idéia de que se trata mesmo de um filme cheio de qualidades – ainda que, de acordo com o perfil que se tem visto em Cannes nos últimos anos, ele realmente tivesse mais a cara das sessões paralelas. Produzido pela Zentropa de Lars Von Trier (o que também não deve ter atrapalhado as negociações para a Competição), o filme é o primeiro de uma trilogia que vai juntar os mesmos atores e personagens com diretores diferentes (todos estreantes, um dinamarquês e um escocês – onde se passa a história).

Red Road não é um filme que se beneficie de ser visto na última sessão da noite numa maratona como a de Cannes (não apenas de filmes, mas de filas, caminhadas, escadarias, etc). Para além da sutileza bonita de seu trabalho de câmera/cores, e acima de tudo do casal principal de atores, o filme, ao longo de duas horas, faz uma série de lentas e graduais mudanças de curso, todas bastante bem resolvidas, mas extremamente sutis – inclusive levando o filme de uma dimensão banal inicial de retrato de uma solidão patética para algo bem mais elaborado. É um filme que deixa na cabeça algumas imagens fortes (em especial o modo como a diretora trabalha as imagens das câmeras de segurança do local de trabalho da personagem principal – belíssima e cuidadosa mise-en-scène dupla), e pede uma revisão urgente para ter acessada suas verdadeiras possibilidades. O que, por si só, é um tremendo elogio.

 


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