in loco
Diário de Cannes - Dia 4
por Eduardo Valente

Nos últimos dois dias Cannes voltou a ser a terra dos autores, que tanto gosta de ser. Aqui o culto ao cineasta atinge níveis quase incompreensíveis, e os que gostam de apreciar a continuidade da carreira de alguns dos mais importantes entre eles tiveram dias cheios. Eu aproveitei a onda para pedir meu primeiro autógrafo em Cannes, depois de quatro anos: saindo de uma sessão da Un Certain Regard, me vi lado a lado com Monte Hellman, que preside o júri desta sessão. Não resisti a oportunidade, puxei o catálogo e Mr. Hellman tascou lá sua assinatura. Me senti um autêntico Cannois.

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Volver, de Pedro Almodóvar (Espanha, 2006) – Competição

Almodóvar mostra todas as armas cedo desta vez: o plano/sequência de abertura de Volver são uma obra-prima em si, fazendo um papel de verdadeiro “abre-alas” do que filme que vem a seguir – apresentando temas, personagens, e mesmo uma mensagem. Trata-se de um filme onde Almodóvar radicaliza sua opção pelas mulheres: os homens estão, na melhor das hipóteses, nas frajas da história (na pior das hipóteses, eles são responsáveis pelos principais traumas das personagens). E que mulheres! Entre Penélope Cruz na sua melhor interpretação, Carmem Maura numa volta absolutamente triunfal ao cinema do amigo Pedro, a fantasticamente funcional Lola Dueñas e a revelação (e, pode-se apostar, futura estrela) Yohana Cobo, o elenco feminino do filme não é menos do que impressionante. Como impressionante, de novo, é o domínio de Almodóvar sobre sua narrativa, conseguindo um balanço praticamente único no cinema de hoje, entre rebuscada linguagem audiovisual, complexidade de roteiro e emoção pura.

O palco está todo montado para Almodóvar levar a Palma de Ouro: uma competição que não parece ter muitos outros favoritos, um presidente do júri que pode apreciar o seu cinema e, acima de tudo, um senhor filme com grande cara de obra que consagra um cineasta que nunca levou a Palma. Não que nada disso seja mais importante do que o filme, mas é de pequenas “tramas” como essa que vive um Festival... Claro que a pergunta seguinte logo surge: é melhor do que os seus antecessores? Além de um pouco boba, na verdade ela é sem resposta. O que há, sem dúvida, são ecos de praticamente todos os seus filmes anteriores, que dão a Volver (nome sugestivo, sem dúvida) uma sensação de obra-tablô – que é justamente porque ele é um favorito a premiar a carreira completa de Almodóvar. Vamos voltar ao filme muitas vezes ainda, e com mais detalhes, o que importa agora é confirmar sua majestosidade (mesmo que seu clímax se revele surpreendentemente anti-climático, quase equivocado), ao mesmo tempo em que nos damos conta de que Almodóvar parece, quase literalmente, fechar um caixão com este filme. O que virá a seguir? Parece um bom momento para ele ficar ansioso por uma mudança...

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Bug, de William Friedkin (EUA, 2006) – Quinzena dos Realizadores

Reinventar-se parece ser exatamente o que Friedkin faz neste Bug, que é de longe o filme mais marcante do Festival até aqui. Marcante, em todos os sentidos: seu efeito é físico mesmo, uma obra de um incômodo muito poucas vezes atingido – que impressiona, acima de tudo, pela aparente tranquilidade com que vai construindo o seu efeito. Bug começa como a história de uma mulher solitária num motel de beira de estrada nos EUA, e a maneira como evolui daí para a frente é, para dizer o mínimo, surpreendente. Cada virada no roteiro equivale a uma virada de tom, de clima, numa espiral de paranóia e horror que pinta um painel nada animador do ser humano hoje – ao mesmo tempo em que é uma bela história de amor louco. Friedkin “brinca” de tão bem que filma, com uma combinação de câmera e montagem marcantes, complementada pelo som que torna praticamente palpável a violência que o filme perpetra com o espectador. Tudo isso a serviço de um roteiro com alguns diálogos memoráveis e um elenco que compra a proposta quase experimental de Friedkin com paixão. Um assombro, para dizer o mínimo, possivelmente omelhor filme até agora exibido em Cannes.

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Il regista di matrimoni, de Marco Bellochio (Itália/França, 2006) – Un Certain Regard
Les anges exterminateurs, de Jean-Claude Brisseau (França, 2006) – Quinzena dos Realizadores

Que os novos filmes destes veteranos estejam fora da competição em Cannes num ano em que não há tantos grandes nomes assim, certamente nos ajuda a entender o quanto eles são desafiadores. Entre os dois, certamente numa primeira visão o filme de Bellochio é o que parece mais bem resolvido (se uma vez um termo elogioso pareceu inadequado a um diretor, foi essa), mas nos dois nós temos impressionantes “cartas abertas” de cineastas que se colocam de uma maneira radicalmente presente na tela dos seus filmes.

Em Bellocchio, o sempre fenomenal Sergio Castellito parece retomar exatamente de onde eles haviam parado com A hora da religião, interpretando aqui um cineasta em crise que termina sendo contratado para filmar o casamento da filha de um “Príncipe” italiano. O filme é uma viagem quase lisérgica, de uma beleza audiovisual extrema, por uma Itália onde cinema, religião e máfia parecem se cruzar a toda hora. Desde uma primeira sequência arrepiante (o casamento da filha do cineasta), Bellocchio faz gargalhar e chorar seguidamente, num filme que nunca deixa de surpreender pelo seu cinismo amoroso, pelo seu grito de desprezo e amor pela Itália (e pelo cinema italiano) de hoje. Não por acaso abundam citações a filmes e cineastas italianos, até o final com um dos mais belos faux raccords já vistos.

Já Brisseau vai um passo adiante na sua exploração do impulso sexual no seu novo filme – mas também vai um passo adiante de Bellochio na sua auto-tematização. Se Bellocchio só pode ser visto na pele do personagem de Castellito pelo caminho da metáfora, da analogia, o personagem principal de Brisseau de fato reconta uma história que ele viveu recentemente, após a filmagem de Coisas Secretas: o diretor de um filme que se envolve com suas atrizes numa relação no mínimo conflituosa entre vida pessoal e trabalho, onde o sexo é o motor de ambas as dimensões. O resultado: na vida real, um processo contra Brisseau por abuso sexual – no filme, não é de surpreender, conhecendo o cineasta, que as coisas tomem uma proporção um tanto mais suprarreal. Certamente um projeto de uma entrega pessoal absurda (Brisseau parecia especialmente emocionado ao apresentar o filme, e ao receber palmas no final), o filme acaba sofrendo um pouco com isso, onde a falta de distância entre cineasta e obra parece criar momentos em que o filme dá voltas em torno de si mesmo um pouco mais do que o desejável. No entanto, nos seus melhores momentos é um filme que deixa claro o gênio do seu diretor, e um complemento necessário ao magistral Coisas Secretas.

 


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