in loco
Diário de Cannes - Dia 2
por Eduardo Valente

Summer Palace, de Lou Ye (China/França, 2006) – Competição

O primeiro filme exibido pela Competição de Cannes 2006 a fez começar em alta. Lou Ye realizou um filme dos mais belos, ainda que eventualmente irregular. Curiosamente, a carreira do filme ainda está um tanto incerta, tendo em vista que ele não foi visto pelos censores chineses antes do Festival de Cannes, e por conta disso sua exibição no país-natal, e mesmo o direito de Lou Ye a filmar nos anos seguintes, estão completamente prejudicados. E não é para menos que o filme foi “escondido”: ele coloca na tela, senão em primeiro plano, de maneira bem forte, os acontecimentos da Praça da Paz Celestial, em 1989 – aqueles mesmos que o Google teve que “apagar” dos seus registros de busca para poder entrar na China. De fato, o filme de Lou Ye não é “sobre” os tumultos e as manifestações, mas elas são centrais a sua narrativa, efetivamente dividindo-o em um antes e um depois que podem facilmente ser definidos como de euforia e de ressaca. Nesse sentido, os censores estariam certos ao julgar que o filme é altamente político – e Lou Ye sabia disso.

Mas o filme é político acima de tudo na sua opção por filmar a juventude chinesa de uma maneira poucas vezes vista no cinema (os filmes de Jia Zhang-ke seriam um paralelo interessante, mas numa chave bastante distinta). Por exemplo, Lou Ye filma algumas das melhores cenas de sexo vistas em muito tempo – e que são numerosas. O filme respira muito perto dos corpos sempre em ação dos personagens – e para isso conta ainda com atuações impressionantes do elenco, em especial da atriz principal. Se sua segunda metade não tem a exuberância e a força da primeira (com algumas cenas efetivamente empolgantes, criando quase um college film à chinesa), isso não é exatamente por um problema do filme, e sim porque o baque é necessário na narração que Lou Ye articula. Na ressaca da segunda parte, o filme vai bem perto do melodrama, e ao não ter medo de fazê-lo revela a segurança do diretor. No geral, uma obra de considerável força, cuja história vindoura deve ser acompanhada bem de perto por todos que se interessam pelo cinema, e política, chineses.

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The Wind that Shakes the Barley, de Ken Loach (Inglaterra/Irlanda, 2006) – Competição
Fast Food Nation, de Richard Linklater (EUA, 2006) – Competição

Depois da “bomba política” que promete se tornar o belo filme de Lou Ye (menos por seu conteúdo e bem mais pelas circunstâncias nacionais), o Festival apresentou outras duas bombas políticas – infelizmente no mau sentido.

A primeira merece uma óbvia observação: Ken Loach já tinha feito este filme, e tinha feito melhor. Ele se chamava Terra e Liberdade. Peguemos a Guerra Civil espanhola, substituamos pela Guerra Civil irlandesa, e aí está o filme novo de Loach, sem uma novidade positiva que seja em relação ao que tínhamos visto em 1997. E de volta está um didatismo político que parece considerar o cinema, antes de tudo, ferramenta pedagógica. As mesmas cenas de discussão política entre os honrados lutadores da liberdade, e os massacres pelos ingleses “maus feito pica-paus”, que não felizes em massacrar os inocentes, gritam e humilham sempre mais e mais. Para cada cena de sofrimento, uma de comic relief, para que o filme mantenha-se uplifting, sem ser “inassistível” – e estamos na terra do bom e velho cinema de esquerda que Loach tanto representa. Mesmas catarses de efeito fácil, mesmo solucionamento narrativo da guerra. Ao final da sessão de imprensa, na maneira que esta tem de sinalizar a recepção do filme em Cannes, poucos correram para a entrevista coletiva para ouvir Loach falar. Ainda assim, deve ser um sucesso no circuitinho.

De Linklater, esperávamos mais. Mesmo que o histórico do filme fosse um tanto desanimador pela obviedade – baseado num livro que revela o “lado negro da indústria do fast food” (e qual seria o lado branco, me pergunto eu?). No entanto, de Linklater se esperaria pelo menos um bom humor que conseguisse lidar razoavelmente com este ponto de partida. Não é o caso: o que há de humor no filme é o mais que esperado pastiche dos executivos de marketing de uma rede de lanchonetes (com piadas mais requentadas que batata frita velha no MacDonald’s), só que ele vem associado a um formato “todos os elos da cadeia” que mistura imigrantes mexicanos cruzando a fronteira a jovens de classe média trabalhadores das lanchonetes (entre idealistas e alienados). Se pensaram em Traffic, as semelhanças são de fato inegáveis (e uma das produtoras do filme é a mesma Participant que filmou Syriana – até agora o melhor entre os três filmes a querer dar conta de complexas “indústrias do mal”). De bom mesmo, algumas pouquíssimas cenas em que o fast food sai de cena, e Linklater pode trabalhar na sua especialidade: a potência de atores e diálogos vivos – eminentemente, e não por acaso, destaque para o pequeníssimo papel de Ethan Hawke no filme. O resto é uma denúncia banal, quando não constrangedoramente ingênua, que serve apenas para receber os óbvios urros de prazer ao mostrar cenas como aquela em que um personagem diz que não há nada mais patriótico do que infringir o Patriot Act (legislação americana pós-11/9 que limitou as liberdades individuais). De Linklater podemos dizer o mesmo que de Soderbergh: preferimos quando eles são servidos com o mínimo de “Conteúdo”, com c maiúsculo.

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Inauguramos aqui um luxo total: temos três cinéticos em Cannes, só que os outros dois estão muito ocupados com seus outros trabalhos em sites e jornais (Kleber Mendonça no Cinemascópio e no Jornal do Comércio, do Recife; e Pedro Butcher, no Filme B). No entanto, como Pedro é um workaholic dos bons, encontrou tempo para aumentar nossa cobertura aqui de Cannes, com notinhas eventuais, sempre com suas argutas observações. Vamos à primeira delas, então:

“Houve uma grande hipocrisia na reação da imprensa “canina” à projeção de O Código Da Vinci. Filas gigantes, tumulto na porta, coletiva lotada – e aquela imensa pré-disposição para promover uma espécie de “malhação de Judas”. No fim da primeira sessão para a imprensa, que aconteceu na terça-feira (16) à noite na Sala Debussy, os jornalistas ligaram seus gravadores e entrevistaram... os próprios coleguinhas, colhendo unânimes opiniões negativas dentre os seres especiais que tiveram o “privilégio” de assistir ao filme “antes de todo mundo” – o que por si só já era uma blague: na manhã seguinte, antes mesmo da sessão oficial de abertura do festival, “Da Vinci” já estava em cartaz nas salas francesas, onde as estréias acontecem sempre às quartas-feiras.

Não defendo o filme, que é muito fraco mesmo, mas Da Vinci foi condenado ao fracasso mesmo do ponto de vista mercadológico – uma sentença no mínimo precipitada. Os rumores que anteciparam a projeção, equivocados, davam conta de um filme de tirar o fôlego, explorando o caráter de ação non stop do livro de Dan Brown. Mas a adaptação de Akiva Goldsman (roteiro) e Ron Howard (direção) vai por um caminho diferente. A ênfase está no caráter “histórico” – ou melhor, na confusão entre fato e mito, entre história e estória, que o livro já explorava de forma perversamente brilhante – e, sobretudo, nos temas espirituais e religiosos.

Do ponto de vista narrativo, Da Vinci é um filme lento que dá longas pausas nas perseguições e fugas para explicar tim-tim-por-tim-tim, em longos diálogos ou flashbacks ilustrados, as teorias que propõe. É como uma versão em Power Point do livro – por exemplo, as letras dos anagramas são iluminadas para que o espectador possa acompanhar claramente o raciocínio do herói na decifração dos códigos (um recurso que Howard já havia utilizado em Uma mente brilhante). O filme oferece ao espectador aquilo que ele não encontrou no livro (pelo menos a edição mais comum), as “imagens” dos quadros-personagens (a Monalisa, a Santa Ceia, a Virgem das Rochas), que são animadas com movimentos que ajudam a revelar os “detalhes escondidos”.

Mas o que impressiona mais são os flashbacks: têm exatamente o mesmo tratamento visual e o mesmo estatuto o passado dos personagens (Landgon caindo no poço, o acidente de carro de Sophie, a infância do monge assassino) e a “nova versão” da “história” de Jesus e da Igreja Católica. São como pinturas que ganham vida, numa espécie de grande e confuso caleidoscópio, no qual aquilo que se vê ganha um estranho e antiquado estatuto de “verdade”.”

 


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