in loco
Diário de Cannes - Dia 11
por Eduardo Valente

Não se sabe se de propósito, ou por uma curiosa coincidência, a seleção de Cannes deixou para o último dia seus três filmes mais perturbadores, no que se refere à como lidar com a violência no cinema. Os três filmes juntos certamente nos servem para algumas observações sobre o infinito tema.

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Election 2, de Johnny To (Hong Kong, 2006) – Fora de Competição

De Johnnie To, já se esperava ver a questão em cena, e até por isso talvez os outros dois filmes tenham chamado mais a atenção especificamente por este tema. De fato, o filme de To foi curiosamente “escondido” numa sessão à meia-noite no último dia do Festival (quando a maioria dos jornalistas e de pessoas do mercado já foram embora, e quando não há mais, por exemplo, cobertura diária de imprensa dentro do próprio Festival – escreve-se para seus meios nacionais/locais, mas não circulam revistas dentro do Festival). Isso pode ser entendido parcialmente pela descrição efetivamente dura que To faz do meio que começou a explorar no seu Election, que competiu aqui em Cannes no ano passado. Mas não deixa de ser uma grande pena, porque este novo filme faz o anterior parecer pouco mais do que uma preparação. Se Election foi bastante comparado com O Poderoso Chefão, Election 2 consegue ser a mistura da parte 2 com a parte 3 da trilogia de Francis Ford Coppola. Do último, acima de tudo traz um tom trágico, operístico, enquanto do segundo traz o personagem de Jimmy, que lembra muito Michael Corleone. E há mais do que um momento que nos faz pensar também nos westerns de Sergio Leone. É uma pena que Cannes não tenha colocado em competição este que foi um dos melhores e mais perturbadores filmes exibidos aqui neste ano, cheio de qualidades cinematográficas, mas também um olhar político fortíssimo – especialmente sobre as relações entre China e Hong Kong (inclusive circulou a notícia de que os kits de imprensa que To havia preparado para o Festival foram impedidos de vir para a França por deixarem bem clara este relação).

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El labirinto del fauno, de Guillermo Del Toro (México/Espanha, 2006) – Competição
Crónica de una fuga, de Israel Adrián Caetano (Argentina, 2006) – Competição

Se To não faz mais do que confirmar nossas (altas) expectativas, não faltaram inversões entre os dois últimos filmes exibidos em competição. Se sabíamos que veríamos um filme que retrata a dureza da tortura física e mental aplicada por uma ditadura sobre pessoas inocentes e sobre guerrilheiros e um filme de horror extremamente explícito e aberrante nas suas imagens, só não sabíamos que o primeiro era a fantasia de Guillermo Del Toro e o segundo era o filme “baseado em fatos reais” de Adrián Caetano.

Del Toro, de fato, nos presenteou com talvez a maior surpresa da competição (e, de novo, um tanto desperdiçada na sua repercussão pela exibição no último dia). Se antes de ver o filme era celebrada sua presença como um primeiro exemplar do cinema de gênero fantástico na seleção de Cannes, depois que vemos o filme percebemos que, sem importar classificações, ele é apenas um dos melhores filmes exibidos este ano. Del Toro constrói um universo que é, ao mesmo tempo, fechado em sua própria capacidade de maravilhar ao criar uma relação quase irreal com o mundo, mas ao mesmo tempo retrata com enorme brutalidade e sem meios tons a crueldade de uma ditadura fascista (no caso, a espanhola, em 1944). O uso que ele faz dos arquétipos do cinema de gênero é excepcional, e sua mistura de climas entre um cinema para as crianças e um cinema que de infantil nada tem é absolutamente tocante. É um filme que se assiste com interesse por cada seqüência, inclusive pela sua direção e os efeitos especiais e a arte, belíssimos. Talvez o filme mais tocante do Festival, superando Almodóvar apenas porque não era esperado – e sempre gostamos de ser surpreendidos.

Já o filme de Israel Adrián Caetano traz de volta o bom e velho (e interminável) debate sobre quais são os limites do cinema de ficção ao tentar retomar, de maneira realista, algumas das maiores atrocidades cometidas na História do homem. Ao decidir contar a história de um inocente goleiro argentino preso por engano na ditadura Argentina, torturado e preso, Caetano fez uma curiosa escolha por um estilo que lembra, em muitos momentos, o do cinema de horror (especialmente na caracterização do espaço da casa onde ocorrem as torturas, mas também os próprios torturadores). No entanto, estas caracterizações são complementadas por um estilo de câmera e cores muito mais próximo do “cinema-verdade de ficção” de um Paul Greengrass em Domingo Sangrento – e a dubiedade destas opções cria um resultado um tanto problemático. O resultado é uma determinada estilização com fins realistas do processo de tortura e aprisionamento dos presos políticos argentinos que, ao mesmo tempo em que adiciona muito pouco a tudo que já sabemos em termos de informações, cria um esquisito (pra dizer o mínimo) espetáculo do sofrimento e da violência com fins catárticos, e pouco mais. Um filme desagradável, sem dúvida – ao espectador julgar se pelo tema que trata ou se por suas opções ao fazê-lo.

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Babel, de Alejandro González-Iñarritu (EUA/México, 2006) - Competição

Num determinado momento, já perto do final do novo “filme-tableau” do diretor mexicano Iñarritu, uma personagem diz que “ela não é má, ela só fez algo estúpido”. Para além do fato de que a frase podia servir de slogan para cada um dos personagens em cena (como Pedro Butcher já comentou numa nota aqui nesta cobertura), ela na verdade seria a melhor definição para o cineasta Iñarritu. Ele não é mau, ele só faz filmes estúpidos – que atingem razoável sucesso por se utilizarem com qualidades que poucos outros dominam da sua “estética do refém”, onde personagens e espectadores ficam à mercê das catarses sucessivas que o cineasta (e o roteirista, não isentemos a parte da culpa que cabe a Guillermo Arriaga) decide impor a eles. O mais surpreendente sempre é ver como a visão extremamente simplista de Iñarritu sobre o mundo e sobre o ser humano pode ser vista como um complexo olhar humanista – principalmente por uma série de golpes básicos de linguagem de cinema e de construção de roteiro (e nisso eles são realmente eficientes). Pois ele é tão complexo no que faz como a metáfora de chamar de Babel um filme que se passa em 4 partes diferentes do mundo, sempre conectadas. “Deep, man!”

Este filme é como uma terceira parte, menos de uma trilogia, e mais de um determinado fazer de cinema, baseado quase na lógica das seqüências de filme de ação. É como se depois da parte 2 (“Iñarritu vai a Hollywood”), tivéssemos um novo chamariz (“Iñarritu goes global!”) – mas o filme continua sendo o mesmo. Histórias que se cruzam com pouco motivo para isso além do fato de que o roteirista acha legal o formato (os japoneses aqui são incrivelmente desconectados, quase um”sketch” separado – com momentos de refilmagem de Encontros e Desencontros por um cineasta católico), a miséria humana exposta na sua forma mais nua e crua (e óbvia e desinteressante), e finalmente a apolitização das relações que conectam as histórias (é sempre questão de acidentes). Aqui, porém, Iñarritu quer ser mais político – então, cuidado, escondam as crianças! Ele chega a algumas conclusões interessantes: a polícia é calhorda no mundo inteiro, os terceiro-mundistas vão sempre se dar mal (mesmo sendo, no fundo, pessoas boas – apenas fazem coisas estúpidas) e os americanos e japoneses vão acabar bem, apesar de tudo. E, no meio tempo, tomara que aprendam a não dar mais rifles para os marroquinos nem deixar seus filhos sendo cuidados pela babá mexicana ilegal! Tudo isso no formato “teoria do caos softcore”. Em suma, “some deep shit”!

 


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