in loco
Diário de Cannes - Dia 1
por Eduardo Valente
Na ensandecida sala de imprensa do Festival (é incrível como a
cada ano parece ter mais jornalistas se acotovelando aqui!), fica
ligada uma televisão o dia inteiro, que exibe a TV Cannes, onde
passam ao vivo eventos como a subida do tapete vermelho, as entrevistas
coletivas dos filmes em competição, etc. É sempre curioso um momento
como o de agora, em que sobe pelas escadas do Palis o cast
de Código Da Vinci (leia-se Tom Hanks, Audrey Tautou, Jean
Reno, Ian McKellen, Alfred Molina, Paul Bettany), e um rebanho
de jornalistas se forma em torno da TV. A imprensa em Cannes vive
o dia a dia de uma clássica luta entre o blasé e o fã-clube,
no que tange as estrelas que visitam o Festival. Ela é quase assunto
mais divertido que as estrelas. Para que não haja dúvidas que
o Festival começou, ontem teve a chegada do cast principal
num trem especial de Londres a Cannes, e há uma réplica da pirâmide
do Louvre construída como um set num dos pontos da praia
francesa, para ser palco da festa do filme, esta noite, depois
da projeção. Cannes é deveras insano.
* * *
O Código Da Vinci, de Ron Howard (EUA, 2006) – filme de
abertura
Hamaca Paraguaya, de Paz Encina (Paraguai/Argentina/França/Espanha/Holanda,
2006) – Un Certain Regard
Se o Festival quisesse (e talvez ele queira –
pelo que seu presidente, Gilles Jacob, diz em uma entrevista incrivelmente
honesta e impressionante na Cahiers du Cinema edição Cannes, onde
falou com detalhes de todas as contradições do Festival), não
poderia escolher dois filmes mais incrivelmente representativos
do fosso entre os cinemas produzidos no mundo do que estes para
serem os primeiros a terem exibições em Cannes. Código Da Vinci,
sinceramente, explica meu ponto sem que eu precise explicá-lo,
o que aliás é parte principal do ponto: todo mundo sabe o que
é – estréia mundialmente nesta sexta. Hamaca Paraguaya,
quase ninguém sabe o que é. E é da junção entre essas duas possibilidades
de cinema (um, uma máquina industrial de Hollywood; o outro, uma
microprodução latino-americana de um país que não realiza um longa
em 35mm desde os anos 70, e que para existir vai buscar seus fundos
na Europa), que se faz Cannes – talvez único lugar em que elas
coexistem sem maiores dificuldades.
Mas os filmes não estão aqui apenas como sintoma
– sua forma também permite essa aproximação. Com o Código Da
Vinci ouso perder pouco tempo, porque já devem existir, neste
momento, milhares de críticas dele na internet. Por isso, como
crítica, basta dizer que eu decidi dormi no meio dele, de propósito
(aliás, mais um motivo para não escrever em detalhes) – e, tendo
visto a maior parte do final, não tenho a menor vontade de voltar
para ver o que foi perdido. Não faço parte da multidão que leu
o livro e nem tenho asco pelas superproduções hollywoodianas,
longe disso. Mas o fato é que o filme (ou a parte que eu vi) é
chatíssimo, justamente porque só subsiste como produto, como necessidade
de passar um blockbuster de um meio para outro, de ilustrar
em imagens e sons o que havia no livro. Nada há de vida, ou de
cinema propriamente dito, no filme de Howard. Cada ator interpreta
seu papel de sempre, no automático, como automática parece ser
a busca do filme pelo tal “segredo” do código. Impressiona como,
para uma narrativa que trata de assunto tão transcendente, possa
shaver tão pouco transcendência nessa história e em como ela é
narrada.
Peguemos,
pois, Código Da Vinci – filme-evento, narrativa absolutamente
literária ilustrada, superprodução internacional – e pensemos
no seu oposto. Este é Hamaca Paraguaya: filme de estréia
da paraguaia Paz Encina, falado em guarani e filmado praticamente
com dois atores, em planos fixos longuíssimos onde tudo o que
não acontece é ação. Beckettiano em cada fotograma Hamaca
Paraguaya é um filme sobre a impossibilidade e a perda. Um
Esperando Godot camponês, cheio de sentimento. Nele, um
casal idoso espera pela volta do filho que foi para a guerra (e
que, claramente vemos desde o começo, não voltará), conversando
em torno dos mesmos temas (a cadela que late ao longe, os pássaros
que o pai ouve mas não consegue ver, a chuva que pode ou não caira),
enquanto sentam numa rede no jardim – a Hamaca do título, filmada
em planos fixos de quase 20 minutos. O som é o aspecto mais fascinante
do filme, quebrando o aparente naturalismo exacerbado ao construir
deslocamentos temporais (e mesmo um jogo de fantasia/realidade
inesperado), e construindo um ambiente rico em camadas. Filme-evento
de um outro tipo (o evento do ineditismo, da construção autoral,
etc), Hamaca Paraguaya não chega a ser de todo bem sucedido
justamente porque seu “atrativo radical” acaba sendo sua fraqueza
– ocasionalmente prisioneiro de seu formato, não consegue escapar
das limitações que este impõe (como prova o efeito sonoro que
fecha o filme, por cima dos créditos finais).
Se, em termos de filmes não foi um gigantesco
primeiro dia de Festival (que também exibiu Paris, je t`aime
e Summer palace, a serem vistos amanhã), sem dúvida foi
um dia muito curioso para refletir sobre o estado das coisas no
cinema mundial que passa por Cannes.
editoria@revistacinetica.com.br
|