O Dia em que o Brasil Esteve Aqui,
de Caíto Ortiz e João Dornelas (Brasil, 2005)
por Cléber Eduardo

Evidência e interpretação

Chamam a atenção os dois objetivos mais evidentes de O Dia em Que o Brasil Esteve Aqui: um é da ordem da imagem, outro de nosso entendimento.

A imagem, encontramos na euforia caótica dos haitianos com a proximidade da partida amistosa de futebol entre o selecionado local e a equipe do Brasil. São imagens de milhares de pessoas na rua, correndo atrás de caminhões de soldados brasileiros (ali em função diplomática-intervencionista), atrás de souvenires da seleção canarinho. O futebol é alçado à categoria tanto de divindade religiosa como de ícone artístico diante do qual se promove um ritual de adoração. Essas situações registradas pelas câmeras estavam lá e lá estariam mesmo se câmera não houvesse. Elas existem por si mesmas, dispensam construção de sentidos. A proposta nesses momentos é testemunhar um fenômeno tão físico (os corpos correndo, amontoados, febris em seu culto, em transe) quanto cultural (a devoção pelo futebol brasileiro), e depois selecionar momentos de impacto visual. Garimpar evidências no espaço, primeiro pela força delas mesmas, só depois pelo significado no contexto. Percebe-se, assim, em alguma medida, a busca do espetáculo. É da ordem da evidência, da imagem, do fenômeno, da experiência.

Da ordem do entendimento é a costura das vozes proposta pela narrativa. Existem sinais da disposição de se ouvir os sujeitos diretos do contexto político haitiano, explicitado pela presença em cena dos soldados brasileiros encarregados de manter e botar ordem na casa. Não custa lembrarmos que o próprio amistoso foi, se assim podemos definir, um dos artifícios da diplomacia brasileira em sua causa momentânea: a mediação da crise de um país na América Latina. Esse jogo em questão é apenas um jogo, se for tomado no sentido amplo do termo. Muitos jogos se encontram nele.

Jogos de características paradoxais, o que, para bom entendedor, emite sinais sobre a transcendência do futebol. Não deixa de soar estranho à uma razão matemática ver a adoração dos haitianos pelos jogadores brasileiros enquanto homem brasileiros armados e uniformizados representam a autoridade estrangeira nas ruas. Um dos entrevistados levanta a hipótese da partida ser um entorpecimento, a velha história de ópio do povo, como insistiam em mostrar alguns documentários nos anos 60 (Garrincha: A Alegria do Povo, de Joaquim Pedro de Andrade; Subterrâneos do Futebol, de Maurice Capovilla). Mas, uma hipótese mais provável é a da fissura entre a questão política nacional, relacionada à simbologia dos Estados-Nações, e a reverência a algo acima dessa categoria: a mitologia em torno do futebol brasileiro como espetáculo, como plasticidade, como habilidade em produzir beleza. O futebol teria, assim, seu próprio estatuto identitário, superando a fronteira dos Estados-Nações. E isso pode levar o haitiano a não ver relação direta entre sua admiração pela seleção pentecampeã e os problemas em seu país com a presença dos soldados brasileiros.

Essas especulações não são da ordem da evidência, da imagem em si mesma, mas da construção de uma estrutura significante, de uma organização de vozes, de um pensamento que rege as informações. O jogo como tal é apenas um dispositivo. Importa menos o acontecimento em campo e mais as conseqüência dele no Haiti. São algumas das vísceras do Haiti que a narrativa tenta visualizar. E entender. Ao estabelecer um pensamento assumido como tal, de modo a interpretar suas situações, O Dia em que O Brasil Esteve Aqui torna-se um filme ímpar. É um filme que, em vez apenas de mostrar situações, procura significá-las, sem medo do reducionismo.

Talvez receosos de serem estigmatizados por características vinculadas ao documentário de modelo sociológico, um dos traços dos anos 60 no Brasil, os trabalhos documentais parecem associar a busca de entendimento com arrotos de verdade, como se abrir mão de compreender seu material para conectá-lo fosse uma atitude de humildade intelectual, vacina contra a arrogância do olhar, postura mais moderna diante da realidade. O problema do documentário sociológico está em sua prática e não em seu conceito. Tornou-se estigma de “realidade inventada pela cabeça do diretor”, “ilustração de idéias pré-concebidas, manipulação de dados e situações para caber na tese”.

Não parece ser o caso de O Dia em Que o Brasil Esteve Aqui. Não estamos em uma narrativa calcada em constatações prévias e com um filme já pronto no esquema. A equipe se faz notar na filmagem sem precisar aparecer, alguns enquadramentos pulsam de energia diante de um fenômeno grandiloqüente (e popular, caótico, impressionante), percebemos a importância do contato com o espaço, sem o qual não haveria sequer filme. Ás vezes, salientando a presença da equipe, temos abusos do zoom, um maneirismo esteticamente grosseiro, sobretudo quando contornável.

Não estamos em um documentário de improviso, porém, daqueles no qual a filmagem é tudo para a proposta. Existe uma pauta de objetivos, e isso às vezes enfraquece a imagem, é verdade. O ar jornalístico presente na busca de informação e associação, salientando o objetivo de comercializar o documentário com as televisões, limita a capacidade de “olhar”, de encontrar em algum vestígio do espaço e das pessoas algo de significativo para aquele lugar. No entanto, mais que ver, o filme ouve – como é comum hoje no Brasil.

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