O Diabo Veste Prada (The Devil Wears
Prada),
de David Frankel (EUA, 2006)
por Leonardo Mecchi
Simpatia pelo diabo
O Diabo Veste Prada
poderia ser apenas mais uma de tantas versões de Hollywood para
a fábula de Cinderela – das quais Uma Linda Mulher (pela
cena de abertura, que é praticamente reencenada aqui, embora em
outro contexto) e Uma Secretária de Futuro (pela semelhança
temática) são apenas as referências mais explícitas. Poderia,
mas não é. Desde o início do filme, fica claro que o diretor David
Frankel não busca uma identificação irrestrita do espectador com
a personagem de Andy, a jovem garota contratada como assistente
da temível Miranda Priestly, editora da mais importante revista
de moda dos EUA. Ao contrário do que explora a divulgação do filme,
interessa a Frankel menos a caricatura da chefe déspota e sádica
do que a relação que se constrói entre Miranda e Andy, e de como
esta irá reagir aos sentimentos contraditórios que essa situação
desperta.
Essa relação das duas personagens é pautada por
um jogo de poder e desejo (um desejo não-sexualizado, no caso
deste filme). Miranda é conhecida como uma das pessoas mais influentes
do mundo da moda: um simples gesto seu pode construir carreiras
com a mesma facilidade com que as destrói. Incitando medo e admiração
em igual medida, sua autoridade fica clara para o espectador antes
mesmo de sua entrada em cena, pela reação que o anúncio de sua
chegada causa em toda a redação. Já Andy nos é apresentada desde
o início como uma pessoa deslocada em relação ao espaço daquela
redação, com seus princípios, intenções e gostos claramente
conflitantes em relação a ele. Recém-formada, idealista, despreocupada
com sua imagem, tudo parece contrapô-la à imponência de Miranda.
Entretanto, apesar de se acreditar superior àquele
meio e às pessoas que o freqüentam, ironizando constantemente
sua frivolidade, Andy não consegue evitar o desejo de agradar
e ser reconhecida por Miranda. Essa ânsia por se mostrar à altura
das exigências de Miranda se deve menos a um desejo de impressioná-la
de modo a galgar eventuais posições na carreira (como parece ser
o caso das outras garotas-modelos da redação), do que pelo fascínio
causado por sua personalidade. Esse deslumbramento e admiração
– até então aparentemente contraditório a sua personalidade –
passa a guiar cada vez mais suas decisões, embora ela se recuse
num primeiro momento a assumir isso (“não tive escolha” é sua
resposta padrão ao ser questionada pelos amigos sobre as atitudes
que passa a tomar).
Essa
mesma operação de glamourização de Miranda e do mundo da moda
é direcionada ao espectador, no que a atuação de Meryl Streep,
os belos figurinos de Andy, a edição ágil e o uso de uma trilha
sonora pop têm papel fundamental. Embora busque um certo equilíbrio
crítico em relação ao meio fashion e suas contradições,
é por demais claro o fascínio do próprio filme pela personagem
de Streep e pelo que ela representa – o que acaba por influenciar
a percepção do próprio espectador. E é ao tentar aumentar o tom
de crítica a esse retrato (até então enaltecedor) que o filme
acaba por perder o rumo que vinha sendo bem trilhado por Frankel,
deixando antever uma moral externa ao filme, que se impõe em sua
conclusão.
A transformação de Andy não passa despercebida
a seus amigos e namorado, que começam a cobrar dela cada vez mais
uma postura coerente com a antiga Andy que conheciam. Com isso,
o filme tenta forçar no espectador, a partir de um determinado
momento, uma relação direta entre a mudança de postura de Andy
e uma eventual rendição ao “lado negro da força”, insistindo no
fato de que ela estaria abandonando seus princípios e traindo
sua moral ao se envolver de tal forma com aquele trabalho. O que
vemos na tela, entretanto, é uma Andy cada vez mais madura, feliz
e realizada com seu trabalho, o que significaria que, para o bem
ou para o mal, seus anseios e desejos já não são mais os mesmos,
algo que nem seus antigos amigos e namorado, nem o próprio diretor
parecem ter percebido.
Quando ao final, colocada diante da opção de se
tornar uma espécie de aprendiz e sucessora de Miranda, Andy escolhe
fugir e retomar os rumos de sua vida pacata e desambiciosa, essa
decisão nos parece incongruente com o que o personagem nos apresentava
até aquele momento, como se aquela conclusão fosse decorrente
dessa moral externa ao filme, para quem a única escolha possível
fosse entre um trabalho glamouroso, porém indigno, ou um emprego
medíocre, mas fiel a certos princípios absolutos. Nesse sentido,
o grande pecado de O Diabo Veste Prada foi ter pintado
um inferno atraente demais para tornar crível sua pregação em
uma ética franciscana.
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