in loco - festival de brasília
2009
Último dia: Qualidades de presença
por Francis Vogner dos Reis
A Falta que me Faz, de Marília Rocha
(MG)
Quando
do seu discurso ao exibir o seu Quebradeiras
neste Festival de Brasília, Evaldo Mocarzel muito gentilmente
fez reverência ao que ele chama de "documentário
mineiro contemporâneo", e citou alguns realizadores,
entre eles Marília Rocha de A Falta que me Faz,
o último longa exibido na mostra competitiva. Nesse afã
de criar linhas de diálogo entre Quebradeiras e
este cinema vindo de Minas, no debate realizado no dia seguinte
à exibição do filme de Marília Rocha,
Mocarzel partiu de algumas questões do documentário,
como o uso da "palavra" pelas personagens, a subcategoria
"cinema direto", além de citar Wiseman, falar
do real e etc. Estava ele equivocado? Não, certamente,
apesar de que pareceu uma pauta bastante descolada do filme em
si.
O problema desse repertório é que há algum
tempo ele anda desgastado em suas leituras e problemáticas.
Troca-se, com muita velocidade, a discussão estética
por uma discussão teórica; o particular, pelo que
muitas vezes (enquanto retórica) é generalista.
Os filmes da Teia, produtora mineira que agrega vários
realizadores (entre eles Marília Rocha) corre o risco de
ter seu nome perpetuado como clubinho estético, por fugirem
de alguns dos caminhos mais comuns no documentário contemporâneo.
Mas as distinções a serem feitas entre os filmes
da produtora é inclusive coisa presente na fala dos próprios
realizadores.
A
exibição de A Falta que me Faz em Brasília
suscitou muitos jargões na imprensa como, o mais típico,
"documentário experimental". Sem dúvida
o filme experimenta sensações e aproximações
bem particulares, mas não se enquadra em um tipo de experiência
formal que faz a fama, por exemplo, de outros filmes mineiros
dos últimos anos como Trecho, de Helvécio
Marins e Clarissa Campolina, Acidente,
de Cao Guimarães e Pablo Lobato e Man.Road.River,
de Marcellvs L, trabalhos que se debruçam incisivamente
sobre as imagens do real se utilizando de artifícios muito
expressivos, como se fosse necessário intervir radicalmente
na imagem para que se amplifiquem as suas potencialidades - por
meio da consciência radical do aparato e dos seus efeitos
sobre a imagem original.
A Falta que me Faz corre na contramão dessa tendência.
A intervenção da diretora não tem a sua força
no direcionamento (no trabalho sobre a imagem), mas na pulsão
de compreender a energia e o fluxo natural das coisas. Por isso
a ausência de um "método de ferro", e mais
um livre agenciamento da contingência da vida das personagens,
dos fatos, do clima, do lugar, da própria presença
da equipe.
O
tipo de aproximação que a diretora tem com as garotas
Alessandra, Priscila, Shirlene e Valdênia, faz parecer (em
princípio) que ela não tinha idéias muito
claras sobre as suas personagens. Mas no filme é esse o
processo de aproximação. No início, o interesse
parece ser uma variação de imagens sobre as meninas
em diversas situações, seguidas de um forçoso
percurso para se aproximar delas. Existem mais estímulos
(pontuais) às falas do que a tradicional entrevista, assim
como não existe um só forjamento de naturalidade
que não seja notado. Se há uma tentativa de fazer
gestos, movimentos e emitir falas para a câmera, tudo aparece
a nu. Apesar de pensar e falar sobre o futuro (algo como "você
quer casar?", é uma pergunta freqüente), sofrem
as inconstâncias e incertezas do presente, vacilante e provisório.
Esses pequenos dramas na cidade de Curralinho, na Serra do Espinhaço,
em Minas Gerais, em um cenário de grandes pedras, vegetação
rasteira, céu, vento e rio, os corpos das meninas expiram
energia e se integram sensualmente a essa natureza. Corpos estes
marcados por essa mesma natureza. A câmera dos fotógrafos
Alexandre Baxter e Ivo Lopes Araújo não emoldura
essa natureza, mas a perscruta e se fascina por ela, procura nas
imagens (e nessa conjugação de corpos e natureza)
uma qualidade de presença, flagra a sensualidade e a brutalidade
das formas naturais, sem uma caligrafia artística. É
o fascínio pela própria integridade das coisas e,
assim como em Stromboli, de Roberto Rossellini, o filme
nos dá a ver a rusticidade da pedra, dos corpos, do céu.
Não há retórica sobre a beleza, a beleza
existe pela evidência das coisas que nos são dadas
a ver. É uma beleza imanente. Toda essa imensidão
cósmica de A Falta que me Faz (as montanhas, as
águas dos rios, a vegetação, o crepúsculo)
em sua brutalidade e beleza, forjam e dão relevo aos pequenos
dramas das garotas que, às vezes banais, às vezes
mais sérios, aparecem em sua dimensão (sempre) extraordinária.
É um filme que merece outros textos e outras reflexões.
Há de se ir fundo no registro da vida das garotas, do universo
particular e em outras ressonância do filmes. Aqui, por
ora, se registra o acontecimento de um filme que faz vir a nós
um universo complexo, simples, comum e fascinante. De quantos
filmes brasileiros contemporâneos pode-se dizer isso?
* * *
Duas classes de beleza: a óbvia e a
verdadeira
Azul, de Eric Laurence (PE)
Faço de mim o que Quero, de Sergio Oliveira e Petrônio
de Lorena (PE)
Azul,
de Eric Laurence (PE) é um filme que se faz em torno da
necessidade estrita de beleza. O azul e seus tons serão
predominantes na história da senhora que espera o filho
em uma casa perdida no sertão do Pernambuco. Muitas imagens
são bonitas, bem cuidadas, de belas composições.
Mas toda essa beleza é pueril, no sentido de que ela não
transcende a beleza para além dessa aparência do
objetivo de ser um "afresco", é uma beleza que
não implica em nada. O drama da senhora e o "rigor"
das imagens sublinham somente o quão sem substância
é o filme de Eric Laurence. É triste quando o que
se tem a dizer sobre um filme diz respeito somente à sua
plasticidade.
Já
em Faço de mim o que Quero, de Sergio Oliveira e
Petrônio de Lorena (PE), a beleza existe não no elogio
ao eletrobrega, não na estética kitsch em si, mas
na integridade com que os diretores encontram esse universo nas
ruas do Recife. Eles vão às coisas (lugares, pessoas,
artistas, dançarinos), sem distanciamento, sem postura
de antropólogo. Não é um filme de truque,
nem de piada. A única estratégia possível
para irradiar a força da cena recifense do brega, é
olhar esse universo de dentro e frontalmente. Por isso, não
há mediações esquemáticas (entrevistas,
informações), nem reprocessamento formal desse universo,
diferente, por exemplo, das gracinhas de Nelson Hoineff em Alô
Alô Terezinha. A busca é o cru, e, sem cinismo,
se deixa levar por tudo aquilo que testemunha. É a sinceridade
do olhar como princípio: o fascínio desse universo
e a sua beleza (o filme não nega essa beleza, mesmo que
pareça estranha), não na capacidade de Sergio oliveira
e Petronio de Lorena em fazer bonito em cima do que filmam. O
humor dos cineastas embarca na irreverência e estética
do eletrobrega (vide os fantásticos créditos finais).
Faço de Mim o que Quero não se faz com um
respeito "burguês progressista" ao eletrobrega,
mas a adesão total a tudo aquilo. Entre tantos filmes excelentes
da safra recifense dos últimos anos, certamente esse é
um dos maiores.
Novembro
de 2009editoria@revistacinetica.com.br
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