in loco - festival de brasília 2009
Terceiro dia: Um respiro, antes da impotência
por Francis Vogner dos Reis

Bailão, de Marcelo Caetano (SP)
Água Viva
, de Raul Maciel (RJ)

Como o assunto aqui deve ser cinema, é bom dizer que os curtas exibidos na terceira noite do Festival de Brasília passaram longe da sombra do inferno da relevância que viria depois. Ambos não têm a preocupação de fazer um tati-bitati para o espectador, embora pudessem ser descritos a partir de definições genéricas como “documentário sobre homossexuais na terceira idade” e “filme sensorial” - já que a categoria “documentário” geralmente é usada para trabalhar a função prática e didática do filme (nos debates aqui em Brasília isso se torna cada vez mais claro); e “filme sensorial” é desculpa para qualquer operação siderante calcada no jargão teórico (esgarçado até o talo) de imagem-tempo e nos clichês de cinema contemporâneo que respondem, sobretudo, por nome de autores (Martel, Jia, Dardennes, Alonso) e pela identificação dos seus procedimentos formais domesticados que solicitam pra si a alcunha de método. Inclusive os próprios curta-metragistas surfam nesse discurso (o peixe morre pela boca, meus caros), que se assemelha a um release teórico preparado para uma fruição do filme.

Água Viva tem todos os atributos pra cair nesse buraco, pois, inclusive, o próprio discurso do diretor Raul Maciel sobre seu filme é quase um guia pra sua fruição. A despeito disso, o filme passa longe da vulgaridade dos filmes pré-fabricados que dependem, muitas vezes, desse discurso. Maciel consegue criar imagens fortes, na tensão da garota com seus interlocutores (pai e um amante) e no processo que leva a garota a parir uma água viva. O que distingue Água Viva de filmes de universitários-influenciados-por-bom-cinema é que o diretor, em vez de optar por expor um “método”, faz escolhas fundamentais que não dependem de tornar claro os seus procedimentos. Ele lida com a vicissitude e ambigüidade de suas escolhas. Água Viva trabalha entre “silêncios” (não por meio do silêncio), e é isso que faz com que boa parte das intenções do diretor tenha força, porque há nisso um jogo entre o que ele (diretor) controla e o que ele não controla.

Imagens do centro da cidade de São Paulo, das suas galerias, de apartamentos, de cinemas pornôs e de uma boate compõem Bailão. O filme de Marcelo Caetano mesmo sendo, grosso modo, um documentário, não tem a intenção de a toda hora ser claro e funcional ou, paradoxalmente, se afirmar como “documentário formalista”. É filme de geografia sentimental, que passa pelos homens e seus lugares – não pelos homens e seus espaços, já que espaços podem ser simplesmente arquiteturas de plano, e lugares (no caso) são intrínsecos à subjetividade dos personagens. Personagens esses que estão presentes em seus lugares, mesmo que a imagem deles propriamente dita não esteja a todo momento dentro do plano. A imersão de Marcelo Caetano nesse universo não cede à tentação da solidariedade piedosa, nem do sórdido. A cidade de São Paulo e seus personagens raramente foram mostrados (seja em longa ou em curta) com tanta verdade. Sensacional.

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Certamente falta aos homens de cinema do Brasil um questionamento mais amplo sobre a História que se faz da ditadura no cinema. E esse questionamento não deve vir somente dos críticos e teóricos, mas dos próprios realizadores. Entenda-se: não é o que se conta, mas como se conta, as implicações morais das escolhas que os cineastas fazem para pensar esse período, sua crueldade, suas causas e, sobretudo, suas interrogações. Não que se peça uma revisão da ditadura tornando-a uma “ditabranda” (como disse o editorial da Folha há algum tempo), não é questão de pegar leve com o regime, relativizar os seus efeitos e as suas causas, ou de se encontrar uma imagem mais satisfatória para representar o horror das prisões, dos desaparecimentos, da tortura. Os vácuos insolucionáveis da ditadura e o horror dos fatos que se conhece parecem sofrer da seguinte reflexão: o que a arte (no caso o cinema) pode fazer para suscitar questionamentos novos ou falar sobre o horror e a repressão para além dos expedientes viciados da reconstituição e da representação?

Poucos filmes, ou quase nenhum, questionam isso. Existe a exceção de Corpo, de Rubens Rewald e Rossana Foglia, que trata da angústia que o presente tem com relação à memória da ditadura, o apagamento das evidências (seus vácuos) e o transtorno que hoje existe ao se tentar recuperar o passado. Não é só a relevância do tema, mas os problemas que ele acarreta ao se buscar dar uma abordagem estética e dramática pra isso – algo que parece não ser muito apreciado, em detrimento da repercussão de um exploitation como Batismo de Sangue (o de Ratton, não o de frei Betto). Nem é questão de fazer denúncia, porque esta já foi feita pela música popular e por uma série de livros, e ainda é realizada por intelectuais, sobreviventes daquele período; e por movimentos, sendo o mais notório o Tortura Nunca Mais. Tudo isso muito mais do que relevante, porque ai é o terreno da prática, não da arte. A arte nem sempre acarreta em uma intervenção direta na História. Por isso, a relevância de filmes que contêm histórias daquele período não basta. A questão é colocar em crise o passado por meio do presente, só assim é possível tratar do passado, pois passado não se recupera. Só assim é possível cumprir a máxima “para que tudo não se repita”.

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Perdão Mister Fiel, de Jorge Oliveira (Brasil, 2009)

O Festival de Brasília gosta de filmes de cunho político, sobretudo, de temas políticos. Em princípio, problema algum. O problema é que essa postura é um reflexo pronto e acabado do “inferno da relevância”. Esta é a única explicação plausível para compreender a presença no festival deste ano de Perdão Mister Fiel, de Jorge Oliveira, um filme precário conceitualmente e impotente enquanto “ato”, justamente porque carece de um direcionamento mais objetivo e da consciência da (im)potência de seus meios. O questionável cartaz do filme diz ser esta a história de um operário que derrubou a ditadura militar. Para cumprir essa premissa, o seu trajeto como documentário é siderado: vai da operação Condor, passando pelos porões do Doi-Codi, a ascensão de Lula, o assassinato de Vladimir Herzog e etc. A história de Fiel, que supostamente seria o coração do documentário, fica perdida em meio a tantos assuntos.

Perdão Mister Fiel começa com imagens do ataque às torres gêmeas, da guerra do Iraque, do Vietnã, e dos golpes de Estado contra o Chile, a Argentina e o Brasil. Na sequência, brasilianistas comentam o papel do governo americano nas ditaduras da América Latina. Depois, trata-se da história de Manoel Fiel Filho, operário que foi assassinado nos porões do Doi-Codi. Uma série de entrevistas relaciona o caso Fiel ao fim da ditadura, contextualizam aquele período, etc. O problema não é a retórica que precede e estimula o filme, mas como essa denúncia se configura esteticamente. É ai que Perdão Mister Fiel revela, de modo bastante explícito em sua precariedade (que é mais estética do que técnica), a impotência de um filme que tem claros os seus objetivos práticos – contar uma história e fazer uma denúncia -, mas que no fim das contas não se questiona sobre os procedimentos utilizados e seus efeitos. Se, para os mais diferentes cineastas, fazer cinema é, sobretudo, uma questão de fazer escolhas e distinções entre o que interessa mostrar e o que não interessa – e escolhê-las já é problematizar também o que se deixa de fora -, é muito claro que essas preocupações não aparecem no filme de Jorge Oliveira.

O seu filme se utiliza do cinema como uma ferramenta que pode organizar um discurso e recuperar (dar imagem a) algumas situações. Só que a retórica é estritamente do diretor (sem construção de discurso cinematográfico, só exposição de elementos que ele acha justo ou nobre abordar em um filme), e a imagem é uma reconstituição estetizada, não distante daquelas do extinto programa Linha Direta. Jorge Oliveira, nesse caso, acreditou em um tratamento estético que privilegiasse a beleza e a emoção, por isso, o preto e branco que revelam uma ou outra peça de roupa colorida, na encenação quase burlesca dos interrogatórios e na sequência final das celas com inscrições em suas paredes como liberdade, fraternidade, etc, com pessoas caídas no chão ao som da música O Bêbado e o Equilibrista. Essas imagens todas trazem à memória a frase irônica de Caetano Veloso em É Proibido Proibir respondendo à vaia dos universitários: “Se vocês forem em política como são em estética, estamos feitos”.

Novembro de 2009

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