in loco - festival de brasília
2007 Quinto dia: Falsa Loura -
a crise com felicidade por Cléber Eduardo
Em
primeiro lugar, a recepção: a exibição de Falsa Loura, de Carlos Reichenbach,
no Festival de Brasília, foi apoteótica durante a sessão, com mais de um momento
de ovação, mas não manteve o mesmo pique no desfecho. Sério candidato ao prêmio
de público (só menos favorito que Chega de Saudade, de Lais Bodansky, que
ganhou uma esfuziante acolhida durante e depois da sessão), Falsa Loura
teve aprovação mais intensa “durante”, e não “depois”, por conta de sua própria
trajetória narrativa. No “meio” do filme, vemos a alegria, as piadinhas, os “atentados”
estéticos cafonas, personagens empenhados em nos provocar o riso sem fazer muita
força, uma colcha de positividade. No final, esse colorido emocional, não sem
lógica, termina acinzentado. Pois essa mudança do meio para
o final é a proeza de Carlos Reichenbach. Embora termine com um lindo momento
de curva descendente de sua protagonista, correndo em câmera lenta em nossa direção,
com os olhos machucados de quem teve corpo mercantilizado e os sonhos submetidos
a bordoadas da vida, essa corrida final é um movimento “para frente” de continuidade
e de resistências. Poderíamos passar linhas e mais linhas analisando esse fim
de percurso, esse novo ciclo ali iniciado e a relação entre potência e resignação
contida na imagem, mas o mais importante é algo mais abstrato e da ordem da sensibilidade/subjetividade.
Apesar
da carga dramática contida nas situações, Falsa Loura é um filme transbordante
de felicidade e de afeto, que, quando adentra o mundo kitsch ou explora
o inusitado, não parece rir de seus personagens, no sentido de ridicularizá-los
e de se colocar-se acima deles. Como isso funciona? Reichenbach primeiro nos aproxima
desses seres, mostra suas contradições (esquemáticas, é verdade), trabalha em
cima dos dois lados da moeda. Pelo menos, dois personagens, pai e filha, são uma
coisa e seu oposto. A protagonista Silmara (Rosane Mulholland), embora seja desbocada,
arrogante, agressiva e um tanto sádica, tanto exercitando o poder em suas relações
quanto sendo vítima do poder, é também solidária e maternal com uma colega, Biducha
(Djin Sganzerla), a quem primeiro destrói com palavras, e se preocupa com seu
pai de passado manchado e presente nebuloso, que carrega cicatrizes no rosto (e
na vida). Essa relação é, além dela, “sintoma” de momento.
A família é um refúgio e uma referência para Silmara e seu pai, a primeira e última
comunidade com a qual podem contar. Esse é o núcleo realmente dramático do filme,
também um núcleo-chave, porque, quando o elo se rompe por opção de uma das partes
e por força das contingências da existência, será a hora de andar com outras pernas.
Daí o penúltimo plano, dela em movimento, correndo adiante, mesmo em câmera lenta,
antes do último plano, uma geral da “cidade”, que nasce da sobreposição com o
rosto de Silmara: individual e coletivo em uma mesma imagem. Estamos
em uma comédia, em um melodrama, em uma mistura de elementos, do kitsch
ao erudito, com os artifícios se fazendo notar, mas, também, como afirma o crítico
Daniel Schenker, encontrando o real na suspensão do real. Por meio dos artifícios
e dos falseamentos oníricos, atinge-se a condição das personagens. Logo de cara,
percebemos que Falsa Loura, em relação a Garotas de ABC e Bens
Confiscados, é mais carregado de “encenação”: os artifícios são declarados,
o kitsch grita (não sem deboche), o cinema mostra-se como operação, não
como busca de uma mimese do real. Podemos ver essa “mão do autor” mexendo a colher
quando uma jovem lê um livro enquanto desfila lentamente de seios nus diante da
câmera. Não está maluco quem vir nessa operação um resquício pensado do grupo
Dziga Vertov, em Jean Luc Godard ou Jean Marie Straub, mas com o banho de humor
de Reichenbach. Cinema conceitual? Em parte. Porque o conceitual
aqui lida com as referências caras ao diretor, como Valério Zurlini e Damiani
Damiani, mas sua matriz e seu código é de um cinema popular hoje deslocado, com
um grau de inteligência nessa manipulação de repertório. Como se já falou aqui
de José Eduardo Belmonte e Julio Bressane, os diretores dos dois filmes mais fortes
desse festival, Carlão também é um cineasta único em suas características de estilo.
Pode fazer suas citações, mas, ao citar, não copia a matriz. Na verdade, parte
delas, mas, ao organizá-las em seu mundo de cinema, as traz para si. O que seria
isso se não fosse o cinema moderno? (deixemos o prefixo “pós” para outros). Em
vez de procurar fazer o diagnóstico de um ambiente, como em Garotas do ABC,
Carlão, como chamamos Reichenbach, está mais interessado em personagens, sobretudo
em sua protagonista – mas não só nela, como se vê na ocupação de espaço por Briducha
e Milena (Susana Alves), que, com poucas oportunidades de cena, compões traços
facilmente identificáveis, apesar de menos complexos e menos ambíguos que os de
Silmara. Carlão acentua o enfoque sobre os corpos, seja quando ele é superfície
de sedução, de desejo e de vaidade, como no trato visual de Briducha, seja quando
é carne a ser aproveitada e jogada fora como qualquer produto descartável. O diretor
evita reproduzir o que está mostrado com senso crítico. Deixa a nudez de Djin
Sganzerla, de cabelos pretos e mal tratados (antes de um banho de vaidade), fora
do quadro e dentro na imaginação – temos de visualizá-lo por meio dos olhares
de suas colegas. Rosane Mulholland também é poupada de lambidas da câmera ou de
olhares vampiros demais para suas formas. Quando seu corpo é uma questão, não
está em situação erótica, não ao menos de forma evidenciada. Rosane
Mulholland: a atriz revelada em A Concepção está com cinco filmes prontos.
Em Brasília, tem dois, o de Carlão e o de Belmonte. Independente de premiação,
é preciso se deter, minimamente, nessa atriz de notável presença. Mesmo demonstrando
limitações nas cenas de explosão dramática, mesmo sendo uma composição de características
evidentes e não necessariamente dada a sutis minúcias, Rosane parece dominar momento
seu, com ar superior e uma firmeza de atitude. Há quem a chame de animal cinematográfico
– a câmera se apaixonaria por ela. Na verdade, é Rosane, antes da câmera se apaixonar,
que se apaixona pela câmera. Ela a seduz. E a câmera suspira, vai atrás dela,
não tanto porque a deseja sexualmente, mas, porque, de fato, está disposta a exibir
seu carinho por ela. Novembro de 2007editoria@revistacinetica.com.br
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