in loco - festival de brasília 2007
Quarto dia: Bressane e a política da estética
por Cléber Eduardo

O primeiro plano de Cleópatra projetado no Cine Brasília, com 600 pessoas sentadas e pelo menos 150 sentadas nos corredores, é um sinal de resistência e fidelidade de Julio Bressane. Resistência porque Bressane insiste em 2007, como vêm insistindo Jean Marie Straub e Pedro Costa, em recusar os códigos e modismos do cinema de sequestro. Em vez de sequestrar, Bressane convida. Não para dar uma volta, mas para entrar em sua morada. Fidelidade à sua casa no cinema, uma fidelidade à resistência. Bressane é único. Seu cinema pressupõe a busca de um universo próprio, que desafia percepções habituadas à regras. Não há mapas: é sempre preciso estar aberto à soma de imagens, sons e músicas, que, longe de tentar criar uma organização de acontecimentos e diálogos, trata a imagem quase como instrumento de uma arqueologia cultural.

Quando abre o filme com o plano do Farol de Alexandria, exibido durante muitos segundos, não interessa a importância do farol para os fatos posteriores, mas a “imagem farol” como signo dissolvido até se tornar significante, com a exposição prolongada despindo as significações para valorizar a plasticidade. E não por formalismo, mas com expressividade. Imagem que exprime, não imagem que explica.  Estética, não didática. Importa o efeito sensorial gerado pela experiência artística que reivindica a troca de chaves e fechaduras para se adentrar a seu universo. Em Cleópatra, como em outros filmes de Bressane que partem do signo de algum personagem real (Os Sermões, O Mandarim e Dias de Nietzsche em Turim), não importam os significados: importa a relação com a representação, o jogo necessário para se obter expressividade.

De nada valem os códigos aos quais fomos habituados em nossa formação. Códigos terão de ser deslocados e esquecidos, de modo a se olhar de outra maneira, de modo a se reconquistar uma inocência diante das imagens, de modo a se relacionar com alguns planos como no primeiro cinema, no século 19, quando o plano-seqüência abria mão de outros para se concretizar, quando a narrativa não era a sucessão de seqüências ou de planos em uma mesma seqüência, mas a própria evolução de ações durante o plano. Há algo de brincadeira nessa autonomia dos planos, sobretudo quando a imagem salienta sua condição de parênteses, de algo a invadir o quadro sem ter sido solicitada. Resulta dessa dinâmica uma negação da condensação de sentidos e uma afirmação de estilhaços a serem vividos sensorialmente. Toda a dinâmica de luz, movimento de atores no espaço, dicção e sotaque buscará, sempre, uma outra forma de ordenamento. Som para um lado, imagem para outro. Cleópatra e Julio César com as vozes trocadas. Close de Cleópatra fazendo caretas. Primeiro plano de uma vagina depilada e “pintada” de preto.

Há humor. Cleópatra em português, Alessandra Negrini, Miguel Fallabela. Se há um deslocamento da personagem em relação a sua cultura, por conta do idioma, esse deslocamento assume a “brasilidade” expressiva de várias formas (sobretudo nos arqueosambas, Noel Rosa, Dalva de Oliveira). Será preciso esquecer os “códigos” Alessandra e Falabella para entrarmos no jogo, mas, por outro lado, são esses códigos culturais dos stars que produzem a tensão entre representação e representados, um curto-circuito capaz de nos propor outras relações. Cleópatra muda o sotaque e a dicção, troca de expressão facial na câmera com função de espelho, não nos permite reduzi-la a sentidos. Cleópatra é ampliada na superfície líquida das imagens. A imagem é inaprisionável em Bressane: ela pode ser tudo. Poucos cineastas são tão subversivos em sua política de cinema.

 A contribuição de Walter Carvalho na fotografia, com Lula Carvalho na câmera, é algo a ser melhor analisado mais a frente. Percebe-se uma presença hiper-evidente da luz, operações de mise-en-scéne próximas das de Baixio das Bestas, de Cláudio Assis (também com fotografia de Carvalho), e uma subversão nunca menos que empenhada em parecer artística. Esse caráter de “experimentalismo chique” em Cleópatra é um dado a ser melhor observado em Bressane, certamente, mas sem perdermos de vista que seu cinema continua sendo, na contemporaneidade, uma expressão muito particular e ao mesmo tempo deslocada dos códigos de seu tempo histórico. Não porque seja ultrapassado, mas porque é, de maneira quase militante, uma expressividade moderna, impura, aberta e radical, com trânsito por várias “maneiras” (manière), como uma arqueologia de maneiras modernas de se trabalhar com a imagem.

Novembro de 2007

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