in loco - festival de brasília
2007 Terceiro dia: o mais belo filme do
mundo - em perigo! por Cléber Eduardo
Um
festival nunca é somente seus filmes, mas, também, as circunstâncias das sessões.
Na segunda noite do Festival de Brasília, o longa Meu Mundo em Perigo,
do paulista de nascimento e brasiliense em seu percurso José Eduardo Belmonte,
começou como um ritual espiritualizado. O diretor e seu filho pequeno, antes de
subirem a escada para o palco, ajoelharam no primeiro degrau, discretamente, em
um gesto quase religioso. Diante de sua equipe, que co-assina a propriedade criativa
do filme (“Um filme de José Eduardo Belmonte e equipe”), Belmonte ajoelhou de
novo, agora com senso de performance cênica, sincera em seus efeitos. Levantou
os braços e agradeceu com reverência. Na seqüência, dedicou o filme à sua família
e beijou o filho com explícita emoção. Estava decretada a primeira tendência do
festival: os agradecimentos emocionados a pais e mães, o que, longe de ser careta,
mostra os sinais de um “cinema de filhos”, de filiações assumidas, ou, no caso
de Belmonte, de pai também filho. O agradecimento familiar também foi ouvido na
apresentação do longa Amigos de Risco, de Daniel Bandeira, e do curta Décimo
Segundo, de Leonardo Lacca. Há um pai lutando contra
a perda de seu filho, um filho vivendo o luto pela morte do pai em atropelamento,
um e outro em tensão conjugal ou pós-casamento. Há ainda uma conexão entre os
dois núcleos, justamente o atropelamento do pai de um dos personagens, que pode
remeter aos filmes de Iñarritu (Amores Brutos, 21 Gramas, Babel). Há ainda
a possibilidade efêmera de um encontro em meio à fuga, em um hotel com função
de casulo, onde se escondem um dos personagens masculinos e uma jovem empenhada
em se passar por muda (disposta a ouvir os testemunhos biográficos de anônimos,
como se não tivesse nada a afirmar, a externalizar, e só precisasse ser habitada
por outros), outras vidas e outros relatos. Filme de rupturas e hematomas afetivos,
de ressentimentos e impotências, com dois homens vulneráveis, que vivem em suas
famílias experiências limítrofes. Meu Mundo em Perigo
começa com uma citação de elogio à potência do ser humano em encontrar saídas
transitórias e temporárias quando estão em um beco sem saída. No decorrer do filme,
contudo, as saídas são estreitas. Para uns, não existe. Para outros, é incógnita.
Na filmografia de Belmonte (Subterrâneos e A Concepção), o terceiro
longa mantém, em linhas gerais, um estilo e escolhas dramáticas. Estamos em mais
um filme com personagens em colapso de compreensão de si mesmos e do mundo onde
vivem, sem controle sobre seus passos e entornos, frágeis, perdidos, sem saber
como agir. Mas o filme se diferencia porque, ao contrário dos anteriores, parece
dar um ponto final mais evidente, encerrando os personagens centrais em uma prisão
do destino. Também estamos em mais um fluxo belmontiano de muitos planos/cortes
e de mobilidade de câmera: o diretor mantém-se em sua organização visual regida
pelo acúmulo de imagens. Determinados
filmes são mais facilmente organizáveis em palavras. Raros são aqueles que, encerrada
a sessão, abre o chão. Por um bom tempo (e é o caso), as experiências mostradas
e a organização delas, nos mínimos detalhes e como sentido geral, precisam circular
interiormente. Também há a impressão de que, em vez de ser um filme com problemas
específicos, a problemática é mais ampla. A tragédia como código salienta o determinismo
asfixiante dos personagens, que cumprem um destino ritualístico, explicitado pelo
uso de música afro, assim como de candomblé. Há um projeto de transcendência,
de sinais párea além deles. Um rito. Não há muitos diretores, brasileiros ou não,
com essa proposta. Belmonte trabalha a imagem, o que a antecede, o que já foi,
o que está fora do campo, mostrando que, além do que nos dá a ver, também deixa
elementos fora do plano, eventualmente relatados como palavras, com um ganho de
tom confessional nesse filme com jeito de testemunho audiovisual. Há
muito mais a dizer, mas não agora. Por enquanto, é o momento de respirar o filme,
digeri-lo, emocionar-se retroativamente, deixando seu poder e impacto se manifestarem
até o limite. A crítica não pode, em relação a alguns filmes que a desafiam para
além da razão, mas não sem a razão, ter respostas prontas. Talvez seja necessário
entrar em crise com os personagens, com seu autor e manifestar essa crise na relação
com a obra. Só é preciso deixar claro que crises podem ser geradas por amor. E
um amor não está desprovido de crises. Não é outra a condição desse crítico em
relação a essa obra. Se é o grande filme de Belmonte, aquele
nos quais os personagens têm mais carne, mais sangue, mais cheiro e mais vida,
ou se é “simplesmente” um grande filme e ponto final (com seu efeito de autenticidade
jamais omitindo a indicialidade de intervenção do autor), ainda não se pode afirmar
aqui – mas, certamente, supor com muita convicção ser essa uma enorme possibilidade.
Se é seu filme mais complexo e problemático, sobretudo na relação do acúmulo em
fluxo com o material humano, também não é algo a se afirmado agora. O que se pode
antever, nesse processo de investigação interna, é a possibilidade, paradoxal,
mas não contraditória, de a obra ser as duas coisas. A inviabilidade da mais bela
imagem desse festival – um recostar de cabeça no ombro – se tornar um encontro
do perdão, no caso entre um filho sem pai e um pão sem filho, é de grande potencial
de choque. Personagens levados de lá para cá por uma instância superior (Deus,
o destino, o autor), eles não têm a chance dessa conexão, porque estão “condenados”
a cumprir uma sina. Por hora, não há comentários sobre as
atuações, sobre as quais se pensará adiante. Por hora, só resta afirmar, com a
emoção de quem revê o filme pelo próprio texto, que Meu Mundo em Perigo,
por todas as características, é dos mais belos filmes do mundo. Em perigo, mas
único. Terminar com “Senhor Cidadão”, de Tom Zé, é um abalo sísmico. Axé, Belmonte!
Novembro de 2007editoria@revistacinetica.com.br
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