in loco - festival de brasília 2007
Segundo dia: subversões, questionamentos, afirmações
por Cléber Eduardo

Três variações de subversões abriram a programação do 40° Festival de Brasília. Subversões de ordem afetiva (o curta Espalhadas pelo Ar, da paulista Vera Egito), de ordem ética (o curta Um Ridículo em Amsterdam, do paulista Diego Gozze) e de ordem ética, afetiva e estética (o longa Amigos de Risco, do pernambucano Daniel Bandeira). Se a subversão do primeiro curta é positiva para as personagens, a do segundo é denunciada pelo filme. E a do longa é tanto reivindicada quanto colocada em discussão.

Comecemos por essa última. A primeira subversão de Amigos de Risco é de ordem estética: captado em minidv e transformado em película, o transfer do filme, aliado à sua própria concepção de registro de imagens, agride o olhar à primeira vista. O visual a princípio parece tosco, os contrastes são opacos, o som eventualmente dificulta o entendimento, mas, uma vez aceitas essas características como códigos internos conectados a um “sistema” de produção de baixíssimo orçamento, entramos na sintonia entre material, ambientes e escolhas formais.

Se uma ficção é sempre um documentário sobre contingências e experiências de sua realização, Amigos em Risco procura refletir em sua linguagem tanto seu orçamento quanto seu universo, trazendo o ambiente de carências do baixo Recife para as opções estéticas. Se está dando imagem a um ambiente marcado pelos efeitos do subdesenvolvimento, nada mais coerente com a tradição cinematográfica brasileira que o esgarçamento desse subdesenvolvimento na própria imagem.

Não deixa de ser uma felicidade que essa militância prática do BO, de um cinema nascido de suas condições limitadas, tenha primeira exibição em um festival criado com o empenho de Paulo Emilio Salles Gomes. No volume póstumo Trajetória no Subdesenvolvimento, que inclui o texto “Uma Situação Colonial?”, o crítico desenvolve a idéia de que, sendo o Brasil subdesenvolvido, seu cinema também o é, com os filmes refletindo, de alguma forma, os traços da própria formação brasileira. Se não sabemos copiar o “outro”, o “ocupante” (o cinema americano), só nos restaria fazer um “outro” cinema, que espelhasse a condição de “sub”.

O comunicado escrito no começo dos anos 70 para um congresso, a rigor, retoma com diferenças o manifesto “Por uma Estética”, de uma década antes, ao entender a condição periférica no capitalismo como estímulo para uma estética adequada à realidade. Nesse sentido, Amigos de Risco, sem ser glauberiano em nenhum fotograma, traz de novo essa questão à tela – agora em um momento histórico no qual o padrão de imagem e de som é rigoroso, com código técnico de exibição pautado pelo “perfecionismo”, mas sem necessariamente uma postura estética em relação a seu material.

A segunda subversão é ética. Amigos de Risco recicla a matriz da jornada noturna de personagens aparentemente escolhidos pelos deuses para bater cabeças e sair da estrada. Temos dois amigos de classe média baixa vivendo pesadelo por causa de um terceiro. Os personagens são situados nesse universo social de forma sintética, por meio dos ambientes de seus trabalhos e de suas casas, mas também por conversas sobre o preço das coisas. A partir de uma deambulação noite adentro por bairros pouco vistosos do Recife, vemos a figura negativa e seus dois amigos, as quais não via faz tempo, construir uma proximidade pautada por uma afetividade.

A tal figura negativa está de volta do Rio e mostra-se um trambiqueiro. Em dado momento, quando um dos amigos é humilhado no fundo do plano por um rapaz em um bar, esse trambiqueiro defende-o sem fazer propaganda disso, antes de entrar em uma crise momentânea no banheiro. São dois momentos sucessivos que atenuam os traços negativos do personagem. Dois momentos até discretos, com uma beleza dentro de sua brutalidade, nascida do companheirismo, do entendimento das experiências como parte de uma comunidade qualquer, não só de uma pessoa.  

No entanto, esse “falcatrua”, depois de apagar após uma overdose, piora com o filme, justamente quando, empacotado, não pode se defender. Será em seu silêncio que seus significados serão salientados. Informações sobre outras atitudes questionáveis e condenáveis do personagem começam a invadir a noite dos dois amigos enquanto eles tentam levá-lo para um hospital. Eventualmente, a necessidade de trazer essas novas revelações leva o roteiro, com efeito de improviso em algumas conversas, a resvalar no esquematismo – embora, com isso, o aparente realismo dê lugar à uma parábola sobre amizade e companheirismo. Para chegar à essa parábola, a subversão estética ganha companhia de uma conservadorismo dramático, com situações plantadas no filme para atender a necessidades, não por valor delas mesmo.

Temos subversão afetiva porque esse companheirismo masculino é abalado pelas novas camadas de sentido para o personagem trambiqueiro. A amizade tem um limite para os dois amigos e, ao trocarem o humanismo a qualquer preço por uma ética com senso de julgamento, criam uma valoração hierárquica, na situação específica, que resulta em inevitável constatação: há quem mereça e quem não mereça solidariedade. Essa é a visão momentânea dos personagens ou do filme?

Amigos de Risco compõe com Baixio das Bestas, de Cláudio Assis, e com o curta Uma Vida e Outra, de Daniel Aragão, também de diretores pernambucanos, um trio de filmes duros em suas visões do humano. Há neles personagens que, em alguma medida, carregam cartazes de “negatividade”, reivindicando do espectador o desejo de suas punições, como se a instância narrativa fosse um juiz e a dramaturgia audiovisual um julgamento de personagens. Não se trata de atacar esses filmes por isso, nem de legitimá-los pela fuga da “representação correta”, mas de pensar como essa morte do humanismo, no fundo, não é morte de qualquer ética e solidariedade

O que se vê, na verdade, é uma nova ética. Ela não tem nada ver com passadas na mão da cabeça dos personagens, nem com o compromisso de construir a boa imagem do homem (ou a imagem do bom homem), mas sim com a recusa do perdão a qualquer gesto. No filme de Daniel Aragão, se o companheirismo e a solidariedade são colocados em xeque, ouve-se um chamado à responsabilidade, com uma noção de ações e efeitos recolocada em bases menos boazinhas. No entanto, o personagem aparentemente punível, a rigor, é relativizável. Não estamos em Baixio das Bestas.

Dois curtas paulistas

No curta Um Ridículo em Amsterdam, de Diego Gozze, há um documentário dentro da ficção. Um rapaz é filmado e entrevistado sobre sua condição “sub” realizada e sobre uma viagem para a Holanda. O fracasso do documentado e suas múltiplas atividades menores são exploradas com sadismo e com estratégias de enganação pelo diretor do filme dentro do filme. Na operação de mise-en-scène, a câmera do documentário na ficção (a do personagem do diretor) e a da ficção propriamente dita são fundidas sem fronteiras aparentes.

O autor do filme está em proximidade, portanto, com o personagem do documentarista. Essa aparente fusão, na verdade inviabilizada pelo fato de a narrativa nos construir o documentarista como algoz e o documentado como vítima pragmática, é questão cara à crítica. E ao cinema contemporâneo de maneira geral. Com a aproximação de alguns filmes o olhar narrador e a os personagens narrados, há uma tendência a se confundir um com o outro, quando, em muitos casos, essa sintonia não existe enquanto operação discursiva.

Temos uma subversão ética cara à relação entre documentarista e documentado, com as relações de poder e a manipulação implicadas, mas também com a subserviência em nome de publicidade do “documentado”, que, apesar de tratado claramente como vítima do diretor (interpretado pelo diretor Diego Gozze), insiste em estar diante da câmera. Há um custo-imagem para quem deseja existir na imagem e, apesar de seus efeitos, o protagonista insiste em ter a “sua própria”, mesmo sendo a “sua” na verdade a imagem sobre ele do diretor do documentário.

O segundo curta da noite, Espalhadas pelo Ar, de Vera Egito, traz subversão afetiva/comportamental. São dois os pólos narrativos. Um acompanha momentos de adolescentes, que, de calcinha e sutiã, fumam escondido na escada de um prédio. Outro mostra imagens em silêncio de uma mulher casada. O contato entre os dois núcleos produz efeitos diretos na vida da mulher casada. Efeitos positivos. No ciclo da vida, vemos começos e rupturas. Como matriz dramática, é algo mais ou menos codificado e previsível, tanto o paralelo iniciação/separação vivido pelas personagens quanto a queda da ficha da mulher casada. No entanto, o olhar do filme para esse código, em cada detalhe, mostra uma delicadeza sóbria.

Os dois curtas paulistas, o primeiro mais complexo ao olhar para a própria condição do manipulador de imagens, o segundo mais delicado em sua manipulação, não são os únicos no Festival. Há outros. Metade dos 12 curtas selecionados são de São Paulo. Após conhecê-los, pode-se supor, com evidências, uma superioridade regional, ainda que circunstancial. Não se obtém  uma média de qualidade digna sem circunstâncias favoráveis. Com a soma de produções de escolas (ECA, FAAP e outras escolas), Prêmio Estímulo (estadual) e edital municipal, São Paulo tem as circunstâncias. Vera Egito fez seu curta como conclusão de curso na ECA-USP; Diego Gozze ganhou o Prêmio Estímulo. Esperemos verificar que os curtas confirmem, noite a noite, o bom aproveitamento dessas contingências.

Novembro de 2007

editoria@revistacinetica.com.br


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