in loco - festival de brasília
2007 Que festival foi este? por
Cléber Eduardo Existe o festival do júri e
existe o festival de cada um. O do júri fez a opção pela radicalidade autoral
de Julio Bressane, com seu cinema único manifestado em cada imagem de Cleópatra,
com suas características sem igual nesse momento, muito distante de modismos e
de tendências, que não arreda pé da vertente moderna em sua face ortodoxa. Também
destacou o cinema “sacode a poeira e dá volta por cima” de Lais Bodansky e Luiz
Bolognesi, diretora e roteirista de Chega de Saudade, casal e parceiros,
que procuram a comunicação com o público, apoiados na trilha sonora, na celebração
do prazer como ferramenta de resistência às perdas e dores, no empenho em fazer
carinho nos personagens. São
esses os dois projetos de cinema mais valorizados pelo júri. O de Bressane (ao
lado) é fechado, ou na verdade aberto demais – exigente com o espectador, do qual
reivindica uma outra atitude, uma não codificação da percepção. A arte para Bressane
é ritual. Um jogo sensorial com o espectador. Emancipação das partes. Para Lais
e Bolognesi, é dramaturgia da emoção. Conjunto, sedução, o prazer. Bressane almeja
muito com a soma de sons e imagens. Laís e Bolognesi almejam o simples, embora,
para obtê-lo, lancem-se a uma complexa operação. O prêmio de público confirma
seu êxito. O de melhor filme para Bressane também legitima sua estratégia moderna. Ainda
segundo o júri, Anabazys, de Joel Pizzini e Paloma Rocha, foi filme de
conceito, com direito a reconhecimento, mas sem destacar demais: montagem e especial
do júri. E Falsa Loura, de Carlos Reichenbach, um filme menor, segundo
o mesmo júri, com direito somente ao prêmio de coadjuvante feminina (Dzin Sganzerla).
Já Amigos de Risco, de Daniel Bandeira, não foi uma questão: talvez tenha
considerado já um reconhecimento o filme estar no campeonato cinematográfico.
Não é o caso de questionar detalhes da premiação, nem de pôr em dúvida a superioridade
de Alessandra Negrini sobre Rosane Mulholland, nem de acusar descaso com Carlos
Reichenbach, nem de ver um tratamento café com leite com Belmonte. É o caso somente
de entender também o conjunto das questões de cinema em jogo no festival. Cleópatra
e Anabazys parecem colocar Bressane e Pizzini/Paloma em certa vizinhança
cinematográfica, embora um trabalhe no plano e o outro no corte/acúmulo, um na
luz e outro na montagem – ambos, porém, lidando com a narrativa como produto de
uma escultura das imagens, não de uma colocação delas em fila para encontrar uma
funcionalidade e um entendimento. È preciso ver as imagens em vez de tentar entendê-las
nessas duas experiências. Falsa Loura não chega a esse nível de decodificação,
mas promove alguns curtos circuitos em sua aproximação com o universo popular,
em parte porque tanto o reverencia quanto o encara com distanciamento afetivo.
Não seria sinal de surto ver conexão com Chega de Saudade, não apenas porque
um se passa o tempo todo durante um baile e o outro tem uma longa seqüência em
casa de show, mas porque o prazer do corpo em ambos é um mecanismo de resistência. O
corpo é mais complexo em Falsa Loura: como pode-se filmar o percurso curto
de uma linda operária cujo corpo é mercantilizado? Reichenbach filma com felicidade.
E é complexa a presença da felicidade em uma trajetória como a do corpo de Rosane
Mulholland. No entanto, é isso ai. Reichenbach quer esse limite no qual se vê
as operárias superando seus limites com sonhos e com suas ações em nome do prazer.
Talvez haja o mesmo olhar-matriz em Chega de Saudade, com o grupo de personagens
dançantes tendo atitude parecida com a das operárias de Reichenbach, mas enquanto
o cineasta assume os artifícios de encenação, claramente apoiado em um conceito
de cinema, Lais e Bolognesi parecem procurar o filme com ele já pronto na tela,
só realmente encontrando uma potência dramática em um dos núcleos, que tem como
centro Stepan Nercessian. Ganhador de dois premios de atuação,
Meu Mundo em Perigo, de Belmonte, saiu legitimado pela conversão do diretor,
digamos, à uma noção de dramaturgia cênica, antes ausente, com o lugar ocupado
pela performance narrativa, sem tanto investimento nas emoções. Meu Mundo em
Perigo é um filme de destinos desenhados, mais ou menos como de Falsa Loura,
ao menos em certo sentido, como o final estilizado, mas menos aberto a novos capítulos
posteriores. Belmonte sai de Brasília como um diretor de convicções, aberto a
sempre correr seus riscos em sintonia com suas expressões anteriores, certamente
um de nossos mais fortes novos autores de cinema. As ações
geradas pelas conexões e desconexões familiares em Mundo em Perigo não
estiveram isoladas em Brasília. A família foi uma questão em vários momentos de
cinema. No filme de Belmonte, de maneira mais explícita: o encontro entre um pai
com o filho perdido para a ex-mulher e um filho com o pai morto em um acidente.
No filme de Reichenbach, a protagonista, acima de tudo, é uma boa filha: permanece
ao lado do pai estigmatizado e o trata com manifestações de amor. Quando a família
não é direta, como a filiação de Paloma Rocha ao protagonista de seu filme Anabazys,
ela se dá de maneira indireta, como a casa de dança de Chega de Saudade,
com seu espírito de comunidade, ou a irmandade colocada a prova em Amigos de
Risco. Coube
a esse longa de estréia do pernambucano Daniel Bandeira (ao lado) o olhar mais
incômodo para essa noção de família, de alguma forma problematizada apenas em
Meu Mundo em Perigo, que, porém, não deixa de perder o encanto por essa
noção. Não é o caso de Amigos de Risco, filme aproximado do de Belmonte
pelo título (risco/perigo, meu mundo/amigos), um e outro lidando com ameaças a
uma organização fechada (o mundo dos amigos, o meu mundo). Nos dois casos, os
mundos fechados ruem, ambos terminam com corpos desfalecidos, em ambos alguém
decide acabar com a vida de um outro, sendo a de um desconhecido, com o qual se
tem um gesto de vingança, e a de uma pessoa próxima, a qual se abandona por um
gesto de punição. Em Meu Mundo em Perigo e Amigos de Risco, há um
desconforto ao final, lá plantado por personagens que, ao tomarem suas decisões
finais, reagem contra suas dores com violência, direta ou indiretamente. Entre
os curtas-metragens, foi flagrante a superioridade de Trópico das Cabras,
de Fernando Coimbra, e Décimo Segundo, de Leonardo Lacca, em relação aos
outros dez filmes. Para não se cometer injustiças generalizantes, cabe, antes
de destacar os dois filmes mais fortes, reconhecer qualidades em alguns outros.
Uma chama atenção por uma busca de uma dramaturgia audiovisual com relação
estilizada com atores e com espaço – tem a imaturidade de quem está atrás de um
cinema maduro. Café com Leite é um bom exemplo de filme com um bom ponto
de partida (um casal de gays com uma criança no meio), um olhar sensível para
seu material e um profissionalismo no encadeamento de suas imagens. Pode-se dizer
mais ou menos o mesmo de Espalhadas pelo Ar, de Vera Egito, que ajuda a
compor o bloco dos filmes delicados e sensíveis realizados em São Paulo, como
também se nota em Trópico das Cabras. E o que mais?
Podemos ver boas coisas em Um Ridículo em Amsterdã, de Diego Gozze, um
ou outro momento em alguns outros curtas, mas, como senso geral, parece haver
nessa safra selecionada o medo do risco, o risco calculado ou a falta de um conceito
em torno do qual o material se articula. Seja em uma aproximação com um grupo
de pessoas agrupadas no curta por uma mania exótica da vida urbana, seja em uma
reunião de imagens de um acampamento de ciganos, sente-se a ausência de uma idéias-mães
audiovisuais, que nos mostre haver ali uma mente organizadora da linguagem e não
apenas uma junção de imagens e palavras. São casos de filmes que não se encontram,
embora, não haja dúvida, possam ter um bom filme deixado fora. Nesse
cenário, Trópico das Cabras e Décimo Segundo (ao lado), ambos curtas
de olho em um casal cercado de alguns enigmas e ambiguidades, se diferenciam bastante.
O casal de Trópico das Cabras é sexual. Ele olha, ela age. Há uma intimidade
e uma distância muito grande nisso. Silêncio expressivo. Ele narra sua sensibilidade
(sem necessidade). O casal de Décimo Segundo é constrangimento. Há uma
perda de intimidade nisso. Silêncio expressivo. Eles falam pouco. Trópico das
Cabras é filme de câmera tátil, texturas rebuscadas, enquadramentos delicados.
O filme olha com desejo e quase toca a pele de sua personagem. Décimo Segundo
é filme de câmera mais dura, com uma imagem mais direta na relação com a experiência.
O filme parece estar mais na cena, como se fosse um terceiro corpo, constrangendo
seus dois personagens. Um olho que se faz notar. Também é
importante notar o bom nível dos debates sobre alguns filmes, com maior empenho
em se discutir o cinema como linguagem, como construção de uma mente e de intuições,
que produzem efeitos e sentidos na relação com o espectador. Houve momentos importantes,
nesse sentido, nas discussões sobre Meu Mundo em Perigo, Cleópatra
e Anabazys. Não é o caso de defender uma visão somente formal dos filmes,
mas, como crítico, pensar o cinema como sensações e como construções, procurando,
nos debates, tanto a comunicação com quem está lá quanto com quem realiza. José
Eduardo Belmonte, aliás, reconhece que Meu Mundo em Perigo nasceu de um
debate em Tiradentes, quando ficou incomodado com um questionamento do crítico
Luiz Zanin Oricchio. No agradecimento ao prêmio da crítica, o diretor também afirmou
a importância de uma nova crítica, com quem diz estar em diálogo, citando nominalmente
a Cinética, a Contracampo e a Paisá. Curiosamente, nenhuma das três foi credenciada
para Brasília – Cinética só esteve no festival por meio da curadoria para Tiradentes.
Para o próximo ano, esperemos, quiçá a situação avance. Novembro
de 2007 editoria@revistacinetica.com.br
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