in loco - cobertura dos festivais
Destricted.br, de Adriana Varejão, Janaína Tschäpe, Julião Sarmento, Lula Buarque de Hollanda, Marcos Chaves e Miguel Rio Branco (Brasil, 2010)
por Juliano Gomes
Proíba-me, por favor
Destricted.br sofre de um espécie de "mal
de nascimento". A idéia em que baseia o projeto cria
uma armadilha para ele mesmo: a premissa de que é preciso
transcender os limites que restringem as imagens de sexo, ou do
que for considerado obsceno no domínio da sexualidade.
O principal problema do filme passa a ser como esquecer essa falsa
questão, pois as imagens de sexo talvez circulem mais do
que as imagens de cinema, tendo encontrado na internet seu terreno
ideal. E aí, chegamos a um ponto central dessa discussão:
esse é um filme sobre cinema, sobre a imagem que se faz
de um determinado assunto. A restrição que existe
é a de espaços de circulação, é
a que separa o que é "cinema" e o que é
"pornografia". Trata-se de uma divisão moral,
onde o "cinema" protege seu espaço de um mercado
audiovisual que não para de crescer, e que tem seu laço
consolidado com o seu público.
Em grande parte dos curtas que compõem
Destricted.br a pornografia é tratada como uma
imagem outra, diferente da do filme, da do cinema - seja por textura,
forma de enquadrar, ou pelo uso mesmo de imagens alheias. Boa
parte dos filmes acaba por incorporar a falsa restrição
ao somente embelezar o sexo, dando uma aparência conformada
ao bom gosto do cinema ou das artes plásticas (domínios
constituídos e aceitos socialmente como moralmente sadios).
Nesse sentido, por exemplo, se estruturam os filmes de Adriana
Varejão e de Julião Sarmento. O primeiro, o mais
plástico de todos os curtas, se apóia numa associação
de formas orgânicas (exploradas com mais precisão
no curta de Miguel Rio Branco) e num estado onírico que,
apesar de lembrar o episódio de Mathew Barney no Destricted
original, parece não levar muito a fundo suas analogias.
Pois, no episódio de Barney, a beleza brotava (literalmente)
de uma estranheza bastante mais radical, aproximando também
o corpo humano a outras formas orgânicas, mas o explorando
em lugares realmente novos e desafiadores, deslocando um certo
"bom gosto" plástico que domina o curta de Varejão,
e parece impedir vôos mais altos.
Já
o de Julião Sarmento parece querer abordar justamente o
problema da falsa restrição ao colocar o relato
do sexo em forma de fala, dividindo a tela em quatro, em três
idiomas diferentes. O filme acaba por agir somente no sentido
de conformação do discurso do sexo, com sua frieza
e distância, reforçando o discurso que acredita na
potência de revelação do "falar de sexo",
quando na verdade é exatamente o contrário - como
analisa o filósofo Michel Foucault em "História
da Sexualidade". Esse discurso da revelação
tem como premissa a existência de uma "verdade do sexo"
que precisa vir à tona. E quanto mais extremo, como é
o caso do que se relata neste episódio, mais "verdadeiro"
parece - quando, na verdade, o prazer é um saber em negociação:
só pode ser medido por intensidade pessoal, é sempre
específico, negociável, conjuntural. Não
pode, então, ter uma imagem verdadeira.
Dois outros curtas acabam fazendo trajetos opostos:
Amor, de Lula Buarque de Hollanda e Day x Nightshots,
de Marcos Chaves. A primeira metade do filme de Chaves é
talvez o segmento mais diretamente sensual de todos os curtas,
abordando com simplicidade e clareza a eroticidade dos corpos
masculinos na praia, colocando em cheque um erotismo que está
no olhar através da escolha de enquadramento, evidenciando
que se trata de um jogo de mostrar e esconder, tomando para si
a tarefa de criar uma imagem frontalmente sensual. Na parte dos
"nighshots", toda força da primeira parece se
esvair na suruba homossexual filmada com efeito nighshot
(para situações de pouquíssima luz, que dá
um tom esverdeado à imagem). Se esvai, pois encerra a força
erótica da parte anterior reafirmando uma imagem absolutamente
consolidada de sexo promíscuo, tornando o primeiro segmento
absolutamente funcional, como preâmbulo soft antes
"do que interessa". Já Amor, que nos mostra
somente imagens já refratadas, filmadas da internet, cheias
de texturas e anteparos que nos afastam dela, se justifica somente
no segmento final, onde o recorte da imagem de Paris Hilton e
seu gesto multiplicam a palavra "devoção"
que dá nome ao último segmento do filme, reforçando
que essa "criação" da pornografia
no século XIX tem uma ligação intrínseca
com a religião. As duas comunhões compartilham do
mesmo gesto, e essa ambigüidade é catalisada com precisão
no curta de Lula Buarque, invertendo o puro jogo de contrários
e efeitos fáceis na qual o filme se estruturava até
então.
Miguel Rio Branco e Tunga apresentam dois dos
episódios mais bem resolvidos em suas propostas. O primeiro,
a partir de uma moldura narrativa de um sonho no metrô,
tece uma idéia de "movimento do mundo", da vida
como pulsação, na qual o sexo se insere, pela semelhança
de seus movimentos e formas, terminando com um belo corte entre
uma imagem de sexo oral e um close de um peixe. Por sua vez, Tunga
vai ainda mais fundo nas analogias e simbolismos, transmutando
os órgãos sexuais em cristais, encenando o sexo
como um ritual de troca e reprocessamento radical no qual tudo
é sensível e processável, e se resume a trocas
de fluidos e materiais que incessantemente se reconfiguram. É
talvez o mais alegórico dos episódios, o que mais
se afasta de um certo regime de imagem da pornografia - mas sem
cair num embelezamento estéril, optando por um certo "mau
gosto" tênue, num filme quase todo amarelo, que beira
a canastrice nas interpretações dos atores.
Ponto de vista, de Janaína Tschäpe,
é o único que realmente se propõe a encenar
uma cena pornô de acordo com a convenções
do gênero. O deslocamento que dá nome ao filme se
dá na maneira de (não) mostrar o sexo. Nosso ponto
de vista é o de uma microcâmera colocada na testa
da atriz, durante uma cena de sexo com três homens. Sua
empreitada coloca em jogo o tipo de olhar que se consolidou ao
mostrar essa cena, que reside principalmente em mostrar o corpo
da mulher. Pois é somente isso que não vemos: ouvimos
os gemidos, às vezes vemos uma perna, mas o que fica na
imagem são os homens, em enquadramentos instáveis
e, na maioria das vezes, abstratos, por conta da proximidade dos
corpos com a câmera. A abstração das formas
entra no filme de maneira oposta aqui: não como artifício
para embelezar, para tornar mais aceitável, mas como resultado
de um contato excessivo, bruto, que não permite à
imagem se fixar ou se consolidar. A opacidade criada não
é da ordem da proibição, para salvaguardar
o corpo da mulher de uma possível subjugação
ou exploração, mas do mergulho dentro da experiência
- subvertendo justamente esse desejo de verdade, de autenticidade,
através de uma imagem de baixa resolução
absolutamente amadora, aumentando um não-saber, um não-ver
sobre o sexo. Opacidade essa, aliás, que se torna absolutamente
literal quando os homens ejaculam na lente.
Talvez
a grande questão seja não mais mostrar a pornografia,
escancará-la nos espaços onde ela é interditada
(o que esse filme, aliás faz muito pouco), partindo da
falsa premissa da hipótese de que isso é reprimido.
Talvez, a questão seja justamente buscar uma imagem do
corpo e do prazer sexual que não esteja conformada, nem
ao bom gosto dos "não-pornográficos",
nem às formas já mais ou menos consolidadas da indústria
pornô (que se transmuta muito rapidamente, para além
dos olhos da crítica e do cinema oficial). O caminho mais
simples para isso, já que o tema é quê imagem
se faz do sexo, talvez fosse, em vez de chamar de diretores "não-pornográficos",
que não participam comumente deste lugar do sexo como comércio,
fazer um Destricted.br - Agora por Nós Mesmos.
Aí sim, provavelmente, as restrições reais
que dividem estes dois cinemas poderiam ser um pouco abaladas.
Outubro
de 2010
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