Deserto Feliz, de Paulo Caldas (Brasil, 2007)
por Cléber Eduardo

Ficar e partir: um sentimento em um plano

O plano inicial de Deserto Feliz, de Paulo Caldas, retorna adiante e mais adiante, de novo, sem nenhuma alteração. É uma marcação de tempo, em torno da qual tudo se organiza; e uma marcação dramática, que expressa, em uma imagem com uma sintética informação de conjunto, o eixo do conflito colocado. Quando esse plano se altera, com a movimentação de um dos dois corpos no quadro, as pontas são conectadas, pavimentando, com uma objetiva  escolha de mise-en-scène, os buracos cultivados. Plano simples, com a luz retirada, câmera enquadrando o rosto de uma adolescente de olhar perdido, Jessica (Nash Lila), a mirar para além dali, no tempo e no espaço. Ao fundo, vemos um rapaz, dorso nu, deitado na cama. Jessica está sentada na ponta. Ela é menina ainda, como se vê, e prostituta já, como logo somos informados. Ele, cliente alemão.

É em torno dessa imagem recorrente, a expressar tanto uma zona de escape quanto uma sensação de imobilismo, que se constrói Deserto Feliz. Conforme avança o encadeamento de momentos, essa imagem-núcleo se relaciona com o sonho de Jessica de sair de Pernambuco, do Recife, do Brasil, de seu destino social, desejo de deslocamento ainda mais forte em sua colega Pamela (Hermila Guedes), para quem “morrer brasileira” é quase a vivência de uma maldição e “nascer de novo” seria o céu na Terra. Jessica e Pamela vivem entre o desejo de partir e a  experiência de permanecerem aprisionadas,  como o tatu com o qual a montagem procura vincular a menina com vida de mulher. Na primeira imagem, olhando para fora do quadro enquanto não se move, esse partir/ficar está lá. Partir para fora do quadro, ficar sentada na cama, lugar de sua atividade profissional. Quem parte é quem volta e não quem se aventura.

Jessica tem mais a ver com Hermila de O Céu de Suely, que com a Evangelista de Baixio das Betas, de Claudio Assis, e é ainda mais distante da Maria de Anjos do Sol, de Rudi Lagemann, e não tem o grau de poesia teen da Rita de Cassia de Diabo a Quatro, de Alice de Andrade, para ficarmos em prostitutas recentes no cinema brasileiro, três delas ainda na puberdade. Jessica é menina doce, capaz de sorrir na lama, enfastiada no imobilismo, mas também capaz de sonhar, de voar para longe – talvez consciente, ou com a intuição, de que, em seu local de origem, não há perspectiva no horizonte. Ela não é exposta a humilhações pela câmera, nem filmada com crueldade, como faz Cristian Mungiu com suas personagens em 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias, para expô-las a uma dose mais intensa de sofrimento. Também não é uma vítima cuja libertação é cisco nos olhos, como a Evangelista em Baixio das Bestas, nem tratada como fruto de um contexto denunciado, como em Anjos do Sol. Ela é apenas uma reunião de momentos observados com muita atenção.

Paulo Caldas não quer as situações importantes para que entendamos esses momentos como sinais orientadores do tema. Parece clara a disposição de nos colocar ao lado de Jéssica, como também faz Mungiu em 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias, como faz Karim Aïnouz em O Céu de Suely, como fazem os Dardenne com Rosetta. São filmes não necessariamente empregados como referência, nem usados aqui em sentido comparativo, mas com os quais Deserto Feliz tem algumas afinidades, justamente por se lançar a respirar o mundo com o pulmão de sua protagonista, por se instalar na efemeridade dos instantes com a sensibilidade dela. Não há como ignorar que, sem ser uma regra, esses filmes íntimos de uma individualidade, nos quais a câmera se interessa antes de tudo por eles, tenham como figuras nucleares jovens mulheres. A exceção recente é Mutum, de Sandra Kogut, com sua fixação, enquanto olhar, na percepção de um garoto.

O investimento no microdramático, que transforma em algo importante para o filme situações aparentemente sem importância (como Jessica tirando letra de música ou dançando com sua mãe, depois com o amigo do pai em clima mais sensual), não é levada a fundo por Caldas. Deserto Feliz caminha na movediça fronteira entre a crença na experiência da protagonista e a mediação dessa experiência por soluções visuais-dramáticas muito conscientes  Em vez de aderir por completo à subjetividade, como faz em alguns momentos, Caldas parece querer evidenciar inteligência, ou ao menos reivindicar uma sensibilidade inteligente do espectador.

O diretor faz uso de imagens a serem associadas com as ações, como a do tatu preso e a recorrência de portas, filmadas não sem efeito formal para nos lembrar, para além da beleza dos planos, do desejo de partir de Jessica. Podemos ainda perceber essa maior racionalidade na sequência na qual mãe e filha são mostradas lavando roupa, no fundo do plano, enquanto, como primeira informação, vemos o short e a camisa do homem da casa pendurada no varal. Teremos mais uma evidência desse olhar quando, após uma cena de sexo quase toda fora de foco, quase uma abstração visual preenchida pelo som, corta-se para o som da roupa sendo esfregada. Mulher na cama, mulher no tanque.

Se é híbrida essa busca de um índice de realidade em uma narrativa de retenção do mundo pelos fenômenos em si mesmos, também há hibridismo na relação entre duração e dinâmica de câmera quando a observação concentrada sofre abalos. O olhar atento é contaminado pela mobilidade da moldura. A câmera se move para cá, balança para lá, subverte o equilíbrio, motivado por uma necessidade de assinatura. Vemos o diretor levantando a mão em vez de grudar os olhos na protagonista. É da ordem do cinema moderno essa exibição do procedimento.

Mas por que exibir a câmera? Talvez por rebeldia estética, somente. Já havia essa busca por uma gramática ao mesmo tempo própria e herdeira do modernismo cinematográfico no Brasil (Glauber Rocha, Andrea Tonacci, Ruy Guerra, Rogerio Sganzserla) tanto em Baile Perfumado, direção de Caldas e Lirio Ferreira (também com fotografia de Paulo Jacinto dos Reis, o Feijão), quanto em Árido Movie, direção-solo de Lirio Ferreira, com fotografia de Murilo Salles. O próprio Murilo Salles, que não é pernambucano, tampouco da mesma geração de Caldas e Ferreira, andou pirando nos enquadramentos em Nome Próprio, chegando a filmar quase de cabeça para baixo em determinado momento. Somente uma visão de detalhe e de conjunto muito distraída para não perceber certa zona de influência entre esses filmes em relação a uma maneira de olhar, procurando sempre soluções vinculadas a uma idéia de juventude estética, que pode surtir efeito melhor ou pior dependendo do material e da situação filmada, mas corre sempre o risco da própria aposta nos riscos e se tornar apenas manifestação de uma procura por certa adolescência do olhar, no sentido de quebrar convenções para descobrir caminho próprio.

Convém, no caso de Deserto Feliz, especular: a mobilidade da câmera quando não está colada em sua protagonista é mesmo um procedimento potencializador das situações colocadas em quadro? Não haveria problema aparente se estivéssemos em um projeto de excessos, mas em Deserto Feliz a contenção e as elipses dão o tom – não somente pela temperatura dramática e pela luz acinzentada, mas pela delicadeza de aproximação com o corpo e com a sensibilidade de Jéssica. Caldas realizou um filme de selvagem beleza e desigual pelo próprio desejo de ser único. Não tem equilíbrio, mas esbanja expressividade.

Outubro de 2007

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