sessão cinética
Desejo Humano (Human Desire),
de Fritz Lang (EUA, 1954)
por Luiz Soares Júnior

Um Assunto de MulheresDesejo humano: arquivo morto

Thea Von Harbou, roteirista dos filmes mudos de Lang, tinha uma frase lapidar: "O primeiro crime leva à última expiação". É esta mecânica draconiana do Destino, que encadeia as primeiras causas às últimas conseqüências - do desejo casual do crime que aflora em um personagem à Danação irremediável de seu mundo -, que interessa ao formalismo demiúrgico de Lang. Mas este cineasta-arquiteto tem uma abordagem radicalmente materialista do trágico: o que nos fascina em Desejo Humano é, nas palavras de Jacques Lourcelles, "dois personagens decaídos, Carl Buckley e sua mulher, que se despedaçam entre si em um universo asfixiante e glacial de apartamentos neutros ou tristes, de compartimentos nus, de estações de trem saídas de lugar nenhum, de linhas ferroviárias com traçados retilíneos e restritivos, que são como uma espécie de imagem de seus próprios destinos"

Se o início de Desejo Humano e A Besta Humana (filme dirigido em 1938 por Renoir que Lang refilma aqui) coincidem, ao nos mostrar a mesma inexorável marcha do trem, a decupagem extremamente variada da abertura do filme de Lang interpola o curso do trem - arauto do Fatum - com uma série de planos que nos situam de forma concreta, perceptiva e sociologicamente, no espaço-tempo da ação; de fato, os dez primeiros minutos de Desejo Humano são, como em Clash by Night - melodrama dirigido por Lang em 1952 - um panorama documentário, o rascunho cartográfico de um décor, de uma linha de força dramática de que o filme vai se encarregar de tirar as radicais implicações. Uma cidade do meio oeste americano, um meio social e profissional em particular - os ferroviários, suas famílias, seus credores e agregados. Ao contrário de Hitchcock, que parte sempre, nas palavras de Truffaut, do menor para o maior, do plano de detalhe para o plano geral, Lang aqui procede da notação sociológica para o estudo do caso. O caso: Carl Buckley, empregado de estação de trem, casado com Vicki, muito mais jovem que ele. Demitido de seu posto, pede à mulher para encontrar John Owens, homem influente e cliente rico da estação ferroviária - de quem a mãe de Vicki fora empregada -, para interceder em seu favor. Neste jogo de gato e rato no qual Carl e Vicki se empenham em estreitar, com a diligência perversa de um complô sado-masoquista, o círculo trágico, falta o terceiro vértice do triângulo: é o personagem de Glenn Ford, que finalmente vai lhes escapar.

Mas aqui intervém uma adaptação fundamental que Lang e seu roteirista, Alfred Hayes, imprimiram à Besta Humana de Renoir, muito mais fiel à novela de Zola: o filme evita toda referência à influência patológica da hereditariedade, que no filme de Renoir era o veículo do trágico. O personagem Lantier, interpretado por Gabin, era um psicopata, que trazia no sangue a maldição de gerações envenenadas pelo álcool; Lang elide o romanesco desta demonização mítica do personagem, e reserva ao décor e à progressão encarniçada da intriga o papel de catalisadores do pathos trágico. A abstração do expressionismo em um universo frígido e asséptico à la Corbusier, levada a cabo por Lang ao longo de toda sua obra americana dos anos 50, encontra em Desejo Humano uma espécie de tubo de ensaio, onde um tema sórdido é mortificado e sublimado pela neutralidade dos movimentos de câmera e crescendo agonístico do ritmo do découpage.

Assim, temos um distanciamento ativo da mise en scène que se traduz por constantes reenquadramentos, onde os personagens, até então em plano médio, são subitamente lançados, com o recuo da câmera, na armadilha do décor: é o plano-ratoeira de Lang, que nos obriga a adotar o ponto de vista altaneiro dos deuses diante - ou antes: acima, no caso das inúmeras plongés usadas no filme - dos destinos humanos. Aquele olhar tão bem descrito por Michel Mourlet a propósito do díptico indiano de Lang já existe em filigrana em Desejo Humano, o pioneiro melodramático dos esqueletos estruturalistas que são seus últimos filmes na América, Suplício de uma Alma e No Silêncio de uma Cidade: "O que há de mais profundo nos filmes de Lang é uma certa maneira de olhar de muito distante, como que do fundo da morte, os homens, as mulheres, o assassinato, a fatalidade. (...) Se não se capta este tom de eternidade, não se capta nada. O silêncio e o vazio".

Este olhar que privilegia a tragédia de câmara ao drama, a contemplação à identificação com os personagens, também se exprime na alternância que o filme mostra entre cenas de tensão dramática e outras de uma ataraxia epicurista, onde os personagens parecem flutuar na transparência de uma resignação fatalista. Os intermezzi entre Vicki Buckley e Jeff Warren - sobretudo o belo "solilóquio a dois" no vagão de trem, em que Vicki, encoberta pelas sombras da noite, pergunta a Warren, veterano de guerra, qual a sensação de matar -, ou entre Warren e a filha de seu companheiro de trabalho, Alec Simmons; ou ainda os planos que espreitam, na sobranceria voyeurista de uma plongé (o olhar impassível dos deuses, com o qual somos levados a nos acumpliciar), a marcha trôpega de Broderick Crawford pelos arredores da estação. Estas sequências são uma espécie de ritornelli do trágico: pequenas intrusões recorrentes no dinamismo da ação que suscitam nos espectadores a suspensão da duração dramática e o recolhimento numa espécie de serenidade mítica, o limbo no qual transcorre o teatro de sombras das marionetes humanas.

A mise en scéne analítica de Lang sempre procedeu por inventariamento. Por exemplo, a investigação levada a cabo pelo Comissário Lohmann num escritório onde trabalhava uma vítima de Mabuse, em Testamento do Doutor Mabuse (1933): os objetos do escritório, submetidos a um exame minucioso, maniacamente preciso, são apresentados como pistas - um plano para cada objeto -, elos de uma cadeia indutiva, como se a resolução a ser alcançada (a identidade do criminoso, os percalços do crime) tivesse como pré-condição uma inspeção material e paulatina do plano. O cineasta é menos um investigador - um olho que se encarrega de inquirir e julgar - do que um arquivista, um ponto de vista que se empenha em recolher e periciar os dados, tornar visíveis a trajetória do delito, o espaço onde ocorreu e o tempo que levou para ser perpetrado: em suma, presentificá-lo. Mas em Desejo Humano esta obsessão analítica de Lang em inventariar o décor - em levar a câmera a ser um sismógrafo de pistas, de signos - a fim de reconstituir uma ação ausente (um crime cometido), e talvez impedir a sua repetição (um crime por vir), está sumariamente reduzida a 5 ou 6 planos, geralmente subordinados a pontos de vista de personagens, perfeitamente integrados à diegese. Por exemplo, quando Gloria Grahame investiga o quarto onde poderia a estar a carta que o marido detém em seu poder, e que poderia comprometê-la no assassinato de John Powens.

A razão desta "lacuna" de um estratagema tão típico da mise en scène languiana é simples: não há mais nada a reconstituir ou a prever, a restituir ou resgatar - a salvar -, nenhuma manobra que possa reverter o curso inelutável do tempo trágico; tempo intransitivo, impostergável e irreversível. O inventário do décor pela câmera, no que concerne à estrutura do filme, sempre cumpriu em seu cinema a notável economia dramática de evitar os flashbacks, de possibilitar uma reconstituição da ação sem a necessidade de uma intrusão narrativa, por obra e graça unicamente do trabalho sobre o plano, da mise en scène; mas também a função - ontológica, demiúrgica - de assegurar visivelmente ao metteur en scène o domínio e a posse do plano, a catalogação dos elementos do mundo como objetos de minha mise en scène. Mas o último Lang, que começa seu percurso com esta austera obra-prima, prefere intervir o menos possível no corpus da ação e das reações (ou unicamente reações?) de seus personagens. Ou antes: parece não intervir. Pois Lang sabe que, para o olhar trágico, tudo já está dado, desde sempre e para sempre. Classicismo perverso, sem dúvida: a mecânica causalística do trágico exige uma transparência argentina, como bem nos mostra a bela foto metálica de Burnett Guffgey; e um contraponto ricercato, que ironicamente parece dar uma chance aos pobres mortais de orquestrarem suas próprias vidas, quando já são motetos de fugas outras, tramadas pela Eternidade...

Março de 2011

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