Desassossego, direção coletiva (Brasil, 2011)
por Raul Arthuso
Progresso
passadista
Não
é o caso de se aproximar de Desassossego como
se faz com um filme de episódio do tipo “Cidade,
Eu Te Amo”, Cada um Com Seu Cinema ou Contos
de Nova York. Pois mesmo que, como muito dessas obras, o
filme capitaneado por Felipe Bragança e Marina Meliande
tenha um ponto de partida do qual se busca extrair diferentes
visões, a dupla tenta compor um discurso único,
que, mesmo que nunca inteiriço, coeso, sólido se
coloca como único pelas intervenções interpostas
aos fragmentos. Desassossego pode ser visto, nesse sentido,
como uma tentativa de manifesto - a começar pelo gesto
de escrever uma carta como ponto de partida para os fragmentos.
Esta
carta, incorporada no filme pela sua leitura por uma atriz na
maior parte das vezes olhando diretamente para a câmera,
tem a forma de incitação, dita alguns sims e
nãos, aponta seus desejos para o espectador,
traça um olhar para a frente, para abrir-se ao espírito
de aventura e do desconhecido. Porém, há uma esquizofrenia
nesse olhar: ao mesmo tempo em que Desassossego propõe
um maravilhamento com as coisas, um olhar de alegria e
afirmação da descoberta, a aventura da vida; esse
manifesto por um novo olhar, embrenhado de cinema, se impregna
de um fetichismo saudosista, baseado na memória afetiva.
O filme está recheado de referências à infância
e adolescência, desde a cenografia que envolve o leitmotiv
das meninas tirando coisas do armário mágico (e
o próprio ato de elas brincarem, em vez de representarem
um papel, já aponta esse norte) até a ficção
científica musical meio retrô (filmada em VHS!),
o resgate da memória por fotografias em polaroid
e não em fotografia comum, o parque de diversões
e a praia filmados pelo ponto de vista uma criança.
O
momento em que alguns adolescentes andam de bicicleta pela cidade
é revelador, pois nele há uma analogia com a descoberta
- mas não qualquer descoberta, saída da imaginação
infanto-juvenil, e sim as grandes navegações do
século XV, identificáveis pelas gravuras de mapas
e a música que remete ao espírito épico do
período. O olhar progressista do filme, na verdade, está
calcado de um passadismo retrô, referencial - vá
lá, pós-moderno. E aí o fragmento da amazona
lutando contra o robô resume esse olhar – e é
importante lembrar que foi dirigido pelo próprio Felipe
Bragança, não se permitindo apenas ser entendido
como uma resposta à própria carta. Nele, tudo é
uma deglutição fetichista do universo infanto-juvenil:
a amazona pintada com guache como um disfarce de criança
que pega os objetos que tem na mão em casa; o desenho do
robô; as lâmpadas ligadas a uma bateria de carro para
compor uma espécie de sabre-de-luz; o sangue feito de ketchup.
O
discurso do filme diz querer apontar o novo, mas olha para o passado
como um fetiche, adocica a tempestade, interrompe a explosão,
pois não consegue desligar a afeição. É
interessante notar que o filme termina de maneira bastante expressiva
essa derradeira das memórias afetivas: a saudade da terra
natal, um momento cheio de lamentação que em nenhum
momento aponta para frente, terminando inclusive com um plano
em rewind da neve caindo em Berlim. E o discurso da descoberta,
da aventura se enfraquece; traz tristeza, aspereza, melancolia.
A esquizofrenia de Desassossego está em não
lançar-se em direção à sua própria
proposta do espírito de aventura pelo desconhecido, a descoberta
do novo. A explosão, figura usada várias vezes ao
longo do filme, que por sua catarse destrutiva permitiria uma
reconstrução de tudo, fica em segundo plano, no
nível do efeito sonoro ou da suspensão. Em Desassossego,
a figura mais sólida é mesmo a do armário
onde se guarda as memórias mais queridas.
Outubro de 2011
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