história(s) do cinema brasileiro
Demanda de exílio - Parte 2: Os novos exilados
por Cléber Eduardo
Para
tratar especificamente dos filmes dos anos 90-2000, convém, antes de mais nada,
demarcar as diferenças entre eles: nada aproxima, no estilo, filmes como Um
Céu de Estrelas e O Príncipe; Terra Estrangeira e O Homem
que Copiava; ou O Céu de Suely e O Caminho das Nuvens. Nem mesmo
os dois filmes de Walter Salles citados, Terra Estrangeira e Abril Despedaçado
(acima), têm o mesmo padrão visual (iluminação + câmera no espaço). Esse conjunto
de filmes não tem, portanto, uma aproximação pelo estilo, terreno no qual mais
se afastam uns dos outros do que, rigorosamente, permitem qualquer tipo de aproximação
entre uns e outros. Leva-se em conta aqui é a recorrência de uma certa mentalidade
dramática, de um certo tipo de conflito que um certo número de diretores, em determinados
filmes espalhados por 12 anos, adotaram como ponto nevrálgico na organização dos
acontecimentos em suas narrativas. Não se está considerando
esses filmes apenas produtos e sintomas históricos, determinados por um conjunto
restrito de enunciados de nossa contemporaneidade, de modo a seguir os caminhos
de Michel Foucault em As Palavras e as Coisas no alvorecer dos anos 60.
De qualquer forma, como também seria romântico acreditar que os autores são superiores
às obras (assim como crer na precedência deles, os autores, em relação a elas,
as obras), como afirmaram Giradoux, Truffaut e Rohmer, tomemos as noções de autoralidade
sem autores de Barthes e Foucault, grosso modo. Assim, consideramos as enunciações
e as propostas dramáticas (e não os autores), mas sem deixar de se dar conta de
como elas se comunicam entre si e de como essa comunicação em determinado momento
histórico acaba por produzir uma certa mentalidade cinematográfica. Portanto,
tenhamos em mente que, se o cinema reflete seu tempo e seu meio, também o produz.
Ou o antecipa. Tais filmes foram realizados em um momento
histórico de redemocratização da política institucional (mais que do país), após
a experiência traumática de Collor, durante as gestões de FHC e Lula, durante
o reaquecimento da produção, exibição e repercussão do cinema brasileiro (com
todos os problemas de sempre). Encerrados os períodos de presidentes militares,
de repressões à resistência, de fuga das fronteiras após o confisco de 1990 e
de tentativa de acabar com os fomentos dos filmes (também em 1990, com efeitos
até 1995, no mínimo), a lógica histórica do exílio não é mais a do presente, como
vimos anteriormente. Então, por que se foge? De que se foge? O Brasil não mudou,
o cinema não voltou? Haveria uma frustração de classe (a do cinema), expressa
nos filmes, com a mudança do país e a volta do cinema? O país do futuro, que parecia
estar agendado para o fim do regime militar, quando o futuro em potencial iria
se transformar em presente de realizações, teria ficado no passado? Dalva
em Um Céu de Estrelas e Tonho em Abril Despedaçado apenas suportam
seus meios. Estão confinados em um ambiente no qual a própria família é um limitante.
Ela em São Paulo. Ele, no sertão. Ela, nos anos 90. Ele, nos começo do século
XX. Um e outro terminarão envoltos em sangue: Dalva vai para o camburrão; Tonho,
para o mar. Ela, órfã de mãe; ele, sem irmão. Ela, uma assassina; ele, um sobrevivente.
Do que fogem? O que negam? Dalva
tem a fuga já planejada no começo de Um Céu de Estrelas (ao lado) porque
tem consciência de sua condição. Não havendo possibilidade de mudanças em casa
ou em sua vida, aproveita um prêmio em concurso de manicure para sonhar com o
exílio. Quer deixar para trás mãe e ex-namorados, imagens de seu determinista
imobilismo social e existencial. Ela quer outra vida, quer ser outra pessoa. Tonho
só fugirá depois do sangue derramado em Abril Despedaçado. Foge de uma
tradição, de uma cultura, de seu pai, intuindo que, em seu ambiente, há pouca
chance de mudança. Portanto, que mude ele, saindo dali. Após descobrir o amor
e as imagens de outros mundos, Tonho, também assumindo o sonho de deslocamento
do irmão, quer ser outra pessoa em outro lugar. Também vemos
essa relação de aproximação e distinção entre Terra Estrangeira e O
Príncipe, ambos com brasileiros desterrados, um chegando à Portugal, outro
chegando da França, um rompendo com ao Brasil, outro retornando ao país, mas sem
mais se reconhecer nele. Não seria Gustavo, de O Príncipe, o futuro de
Paco, caso ele sobreviva ao final de Terra Estrangeira? E não seria o aborto
do exílio europeu de Paco um movimento paralelo do aborto do exílio americano
de Dalva em Um Céu de Estrelas? Ela atira. Ele é baleado. Ambos terminam
no carro, ela no da polícia, ele rumo ao desconhecido. Á morte, talvez. O
desconhecido é o mesmo destino de Lena em Latitude Zero (ao lado), destino
para o qual segue na caçamba de uma caminhonete, depois de fracassar no primeiro
projeto de rompimento com o lugar (São Paulo). É preciso abandonar o novo espaço
(no Norte), também envolta em sangue (como em Terra Estrangeira, Um
Céu de Estrelas e Abril Despedaçado), também assassina por auto-defesa
(como nos três filmes), com filho no colo a levar para o futuro, mas para futuro
indefinido. Já Suely não precisa sujar a mão com o sangue alheio em Um Céu
de Suely (2006): usa apenas o próprio corpo para sair de Iguatu, sem agressão
física, mas segue para um futuro incerto, dentro do ônibus. Incertas são, afinal,
todas as rupturas. Sabe-se com o que se está rompendo, mas não o que será dos
efeitos. Há uma diferença de tom entre os destinos incertos
de Paco e Dalva em 1995, e os destinos incertos de Lena em 2000 e Suely em 2006.
Paco e Dalva terminam sem esperanças evidentes de viverem dias melhores: Paco
pode morrer; Dalva, mesmo se não for presa, tem perdas a carregar. Ambas terminam
sem mãe. Lena e Suely também perdem (ambas o seu “homem”, uma pela morte, outra
pelo abandono), mas, ao contrário de Paco e Dalva, elas carregam a esperança da
mudança. Suely deixa o filho para seguir com maior independência. Lena leva o
filho para onde for. Esse menor ceticismo no filme dos anos
2000 em relação ao dos anos 90 pode até ser confirmado pelos desfechos de Abril
Despedaçado em 2001 e de O Homem que Copiava e O Caminho das Nuvens
em 2003. Curiosamente, os três encerram no litoral, em frente ou acima do mar.
Um em luto libertário. Outro em celebração. O terceiro em resignação. O Cristo
Redentor surge como o espaço do encontro dos desterrados internos do Sul (O
Homem que Copiava) e do Nordeste (Caminho das Nuvens): os gaúchos fugindo
da classe média baixa, após um dinheirão conseguido por sorte e por transgressão;
os cearenses fugindo da pobreza, atrás de mínimo salário digno. No primeiro caso,
com dinheiro no bolso e o sonho do consumo realizando-se, as questões são resolvidas.
O narrador-protagonista André conquista a narradora-coadjuvante Silvia, um outro
par é formado (entre Marines e Cardoso), até um pai simbólico aparece na seqüência
final (Paulo), sob os braços do filho do Pai. No segundo caso, o mínimo salário
digno não é conseguido por Romão e, como essa reivindicação torna-se coisa de
doidivanas, melhor resignar-se na pobreza, pois pobre urbano, intui a esposa Rose,
acima do Rio e debaixo do Cristo, é superior ao pobre rural. Na imagem, olha por
cima. No
entanto, entre estes filmes, há O Príncipe, de Giorgetti (ao lado). Nele,
o desiludido Gustavo termina no aeroporto, dizendo a uma mulher na fila do vôo
para a França, que voltou apenas para ir a um enterro. O do país, claro. Sua volta
para Paris, além de lhe garantir menor desconforto, propicia distanciamento. E
ignorância, em sentido literal, de ignorar. Gustavo não quer mais participar,
não é mais dali, por isso seu destino é o “re-rompimento” – mesmo sem tanto risco,
porque já está situado de alguma forma em outro espaço. Seu percurso tem mais
a ver com o do legista Olavo Bilac em Brasília 18% (2006), de Nelson Pereira
dos Santos, que volta para os EUA depois de um transtornado retorno ao país. Curiosamente,
Giorgetti e Nelson Pereira, dos diretores aqui abordados, são os únicos iniciados
antes dos 90, portanto, com um olhar de quem viveu expectativas outras. O
exílio como opção dramática? Os filmes brasileiros levados
em conta aqui seriam uma reação de diretores ao tempo histórico de forma ampla
e ao país de forma específica? Ou todas essas rupturas com lugares seriam coincidências
modeladas por estratégias dramáticas? O colega de editoria Leonardo Mecchi desconfia,
por exemplo, que, em vez de serem reflexos de quaisquer situações ou de espíritos
do tempo, esses filmes refletem, na verdade, a necessidade de conflitos, intrigas
e dramas, de modo a se adequarem a necessidades dramáticas, tendo em vista que,
no cinema brasileiro contemporâneo, as balizas do roteiro são necessárias para
editais. Só se tem, afinal, a analisar para a distribuição do dinheiro, o cinema
“escrito” – daí serem necessárias tensões, dramas, acontecimentos-limite. Deslocar-se,
romper, fugir, sim, é sempre um drama. Mas discordo parcialmente
da hipótese de Mecchi, dessa relação tão direta entre contexto de produção e resultado
na tela. Não é o caso de ignorá-la, mas de relativizá-la. Tanto quanto os modelos
de produção e de legitimação de roteiros existem as opções dos diretores, os interesses
cinematográficos, as escolhas de quais conflitos filmar. Rompimentos com lugares
não é a única forma de se adequar a modelos dramáticos com vistas à sedução do
espectador. Nesse sentido (o de modelo de conflitos que se comunicam com intensidade),
esses filmes, de público nunca muito amplo, não são exemplares. Nenhum deles vendeu
milhão de ingressos, muitos mal foram vistos. Ou seja: deslocamentos, fugas e
rupturas, em si mesmos, não são garantia de interesse (ou de amplo interesse).
Talvez tenham mais a ver com a relação de seus diretores com seu momento, pois,
com tantos situações para filmar, escolhe-se a do deslocamento e a do rompimento.
Não podemos ignorar, porém, um dado concreto. O diretor
de mais ampla circulação internacional entre 1997 e 2005 foi Walter Salles, diretor
para quem o deslocamento como movimento e como sensação sempre foi a matriz de
seu cinema (de A Grande Arte a Água Negra, passando por Diários
de Motocicleta). Se este foi nosso modelo de cinema mais exportado e de maior
legitimação internacional, talvez seja o caso de especular se seus deslocamentos
e rupturas com espaços, vistos em Terra Estrangeira, em Central do Brasil
e em Abril Despedaçado, não se tornaram a marca brasileira na Europa e
EUA. Conseqüentemente, um modelo a ser levado em conta, em alguma medida. Talvez
a nova dramaturgia brasileira internacional passe, de alguma forma, pela crise
com os espaços onde se habita, com o peso de se ser de onde se é, tendo o mundo
lá fora para se ser outra coisa. Consciente ou inconscientemente, os outros deslocamentos,
talvez, quem sabe, respondam ao caminho de Walter Salles, mas com distintas maneiras
de se aproximar da situação Nesse sentido, precisamos relativizar.
Meirelles se evidenciou internacionalmente com um filme de protagonista que não
rompe com a origem para se deslocar dela, como se vê em Cidade de Deus,
pois, ao final, sabemos de sua nova condição social e vemos sua imagem na favela,
com a qual vai se manter em outra condição, pois é a matéria-prima de suas fotografias.
Deslocamento sem ruptura. Realocamento, talvez, no mesmo lugar. De qualquer forma,
há crise com espaço, há desejo de se ser outra coisa e essa outra coisa está fora
dali, na redação de um jornal na Zona Sul do Rio, espaço da classe média e da
elite. Não se rompe com o lugar, nem se altera o espaço (no final, ainda mais
degradado), mas vive-se dele, de sua degradação. Cidade
de Deus poderia então apontar para outro rumo, o de um deslocamento sem rompimento,
mas, quando se vê o desfecho de Cidade dos Homens, de Paulo Morelli, filme-filho
da série que é filha do filme original, vemos que a lógica da O2, produtora de
Meirelles e Morelli, não é exatamente uma lógica. Nos dois casos, quando tudo
termina, tudo começa: há um novo ciclo a ser vivido. No entanto, se Buscapé termina
na melhor, Laranjinha e Acerola terminam sem nada, sem o que conseguiram, sem
o que já tinham, sem o lugar onde moram – tendo, portanto, de reinventar-se em
outro lugar, sem haver qualquer deslocamento nesse rompimento (temporário que
seja). Buscapé muda sem sair do lugar; Laranjinha e Acerola saem do lugar sem
uma mudança de fato à vista. Portanto, a lógica de Walter Salles, nesse momento,
parece vigorar sobre a de Meirelles. Setembro
de 2007 editoria@revistacinetica.com.br
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