história(s) do cinema brasileiro
Demanda de exílio - Parte 1: Breve história do exílio
por Cléber Eduardo

Nos últimos 12 anos, de 1995 a 2007, de Terra Estrangeira a O Céu de Suely, foram muitos os deslocamentos no cinema brasileiro – ou ao menos as tentativas de deslocar, com motivações variadas, mas, em linhas gerais, em alguma medida relacionadas às perspectivas econômicas e sociais. Quando revemos a sequência final de Terra Estrangeira, com Paco e Alex no carro, ele ferido, ela ao volante prometendo levá-lo "para casa", podemos identificar o sinal de um processo, que, apesar de ser do filme, também o ultrapassou. Na imagem, enquanto se ouve “Vapor Barato”, letra de Jards Macalé interpretada por Gal Costa, o carro segue na estrada, com a câmera filmando em plongée, do alto para baixo. Não segue para qualquer lado, mas da direita para a esquerda no quadro, em movimento anti-horário, de retorno – não no tempo como se fosse a inversão do relógio, mas no espaço geográfico, que não deixa de ser o movimento de um ponteiro.         

Mas, para onde ela promete devolvê-lo? Para o Brasil, terra natal e de residência com a qual rompeu, que constitui retorno no espaço? Ou para San Sebástian, solo da mãe morta após o confisco da economia pelo plano Collor, matriz de seus antepassados, que resultaria em retorno no tempo (à sua gênese)? Retorna-se de Portugal, país dos navegantes/descobridores, agora ponto de chegada de imigrantes colonizados, em momento de navegação encalhada (imagem-emblema do filme usada em seu cartaz). Paco foge da nação dos descobridores, não para descobrir algo, mas para vagar rumo à “origem em crise”, ou, provavelmente, para morrer em terra estrangeira. É um brasileiro sem lugar no mundo. Está sempre partindo.

Não é o único ou um raro personagem a romper com seu espaço de origem para alterar a rota de um percurso biográfico. Essa recorrência de deslocamentos e rupturas nos leva a especular quais as possíveis razões para essas opções. Parece haver uma dramaturgia do exílio nos últimos anos, presente com maior expressividade em Um Céu de Estrelas (Tata Amaral, 1996), Latitude Zero (Toni Venturi, 2000), Abril Despedaçado (Walter Salles, 2001), O Príncipe (Ugo Giorgetti, 2002) O Homem que Copiava (Jorge Furtado, 2002), O Caminho das Nuvens (Vicente Amorim, 2003), e O Céu de Suely (Karim Ainouz, 2005). São vários os percursos e direções: partindo de São Paulo para Miami, Paris e para o Norte do Brasil, do Sul e do Nordeste para o Cristo Redentor, do sertão nordestino para o mar, do Ceará para o Sul . Parte-se de todos os lugares e para todos os lugares.

O que nos mostram esses filmes? Haveria na soma deles uma reação a seu momento histórico, uma afirmação de um sentimento de não-pertencimento a espaços e uma necessidade de estar sempre de mudança? É como se nenhum lugar fosse bom o suficiente para se viver, como se a ausência de perspectivas utópicas, capazes de fazerem da frustração um combustível (não apenas para a própria trajetória, mas para toda a comunidade de onde se está partindo), empurrasse esses seres para fora de seus ninhos. Encerrado o regime militar e retomada a produção, há um segmento do cinema feito no Brasil nos anos 90 e 2000, longe de ser hegemônico, que continua demonstrando inquietação com a permanência. Permanecer parece reduzir-se à estagnação.

Uma dramaturgia do seu tempo?

Não se trata mais de refletir sobre a lógica histórica dos anos 70, quando brasileiros fugiam do país ou eram cuspidos fora pelos militares, mas de perceber uma nova dinâmica de rompimentos, muitas vezes internos. No cinema brasileiro dos anos 80, por exemplo, fora da tela essa era uma questão. Depois da vitória no Oscar de A História Oficial (1984), do argentino Luis Puenzo, os latino-americanos (na verdade restritos a argentinos, brasileiros e mexicanos) passaram a se deslocar para o cinema americano ou transnacional.

No Brasil, Hector Babenco, depois do êxito internacional do híbrido O Beijo da Mulher Aranha (1986 - ao lado), fez mais dois filmes em língua inglesa, com orçamentos em dólares. Bruno Barreto passou uma temporada norte-americana tentando encontrar um lugar indefinido entre o cinema de gênero pensado para vender bilhetes e o cinema de autor pensado para expressar um olhar. Sergio Toledo também foi filmar na Inglaterra, ainda que, transculturalmente, um drama político de ambientação no Paraguai. Diante da dificuldade de se filmar no Brasil, foi preciso deslocar-se para outros países, pois permanecer seria a inatividade ou a choradeira. Deslocar-se tornou, mais que sonho, questão de sobrevivência.

José Carlos Avellar localiza outros ângulos desse deslocamento no ensaio “Cego às Avessas, publicado originalmente em 1990 na revista Mirada dos Tres Mundos (ligada à Escola Internacional de Cine y TV de San Antonio de los Baños, La Habana). Partindo de uma relação entre dois filmes de Cacá Diegues separados por 10 anos, Bye Bye Brasil (1979) e Dias Melhores Virão (1989), cujos títulos dão adeus ao país e relacionam o futuro a cair fora, Avellar passa em revista o cinema brasileiro dos anos 80, procurando nos filmes as evidências de uma demanda de exílio, às vezes expressa de maneira simbólica, sutil ou não tão clara quanto parece ao crítico. O filme-síntese desse espírito seria Nunca Fomos Tão Felizes, de Murilo Salles:

O cinema que fizemos na década de 1980 está mais perto do filho que do pai de Nunca fomos tão felizes. É uma imagem mais perto da vontade de partir, que surgiu por volta de 1980, do que daquela outra mais forte por volta de 1960, a de entrar na discussão do quadro político e social do país como realidade transformável pela ação do homem (através do cinema, entre outras coisas). O cinema que fizemos nos últimos anos tem mesmo muito a ver com o jovem que, levado pelo pai para um apartamento vazio, passa o tempo vendo televisão e dedilhando numa guitarra elétrica um som parecido com um rock. O cinema da década de 1980 parece O estrangeiro cantado por Caetano Veloso no disco feito na metade de 1989: um cego às avessas, que como nos sonhos só vê o que deseja.

O sentimento identificado por Avellar em diversos filmes dos anos 80, de Ópera do Malandro (Ruy Guerra, 1986) a Anjos da Noite (Wilson de Barros, 1987), de Eu Te Amo (Arnaldo Jabor, 1981) à Dama do Cine Shanghai (Guilherme de Almeida Prado, 1988), não é de deslocamento físico, mas de um deslizamento cultural de personagens e espectadores. Em Gaijin, de Tizuka Yamasaki, somos levados, de maneira bastante evidente, a nos identificar com a imigrante, uma jovem japonesa recém chegada ao Brasil. Já o imaginário dos personagens e a própria configuração de alguns filmes, como Bye Bye Brasil, Dias Melhores Virão, A Dama do Cine Shanghai, dos curtas Frankenstein Punk e Garotas das Telas (ambos de Cao Hamburguer), assim como os já citados Ópera do Malandro e Eu Te Amo, absorvem em diferentes medidas o repertório cultural americano. Não há, com exceção de Dias Melhores Virão, rompimento físico.

Talvez possamos localizar a semente da demanda de exílio, essa em sentido literal, em um filme específico dos anos 80, Dedé Mamata, de Rodolfo Brandão, um filme pouco considerado pela crítica contemporânea. Dedé Mamata termina de maneira emblemática: enquanto somos informados pelo tele-noticiário que os exilados políticos estão voltando, sinal da anistia e da abertura, o jovem protagonista encaminha-se para o Galeão, rumo ao seu exílio motivado pelas relações com o tráfico de drogas. Isso era 1988. O personagem parte quando o país ruma para a democracia. Suas necessidades individuais, porém, são superiores à nação: ele tem de salvar o pescoço.

Os anos 90 começaram com um americano tentando entender a lógica do submundo carioca em A Grande Arte, de Walter Salles, que, em vez de deslocar-se para fora, internalizou o “fora” na própria narrativa ambientada no Rio de Janeiro. Diálogos em inglês, protagonista americano. Operação semelhante empreendeu Monique Gardenberg em Jenipapo, também falado em inglês, também com protagonista estrangeiro, que se passa em um país aparentado com o Brasil (como é a prisão de O Beijo da Mulher Aranha e a Amazônia de Brincando nos Campos do Senhor, ambos espaços sem nacionalidade definida).

Não há nessas relações todas um sentimento de exílio mesmo quando se está em seu país de origem? Não há uma sensação de deslocamento, no sentido de se estar em disjunção? A incerteza parece marcar a maioria dos filmes com demanda de exílio, como se a narrativa terminasse em reticências e não com ponto final. Nenhuma novidade no cinema brasileiro. Jean Claude Bernardet já havia notado isso em Brasil em Tempo de Cinema em sua análise sobre os filmes brasileiros dos anos 60.

Da mesma forma, podemos localizar no cinema latino-americano outras tantas disjunções entre indivíduos e seus espaços, de Terra em Transe, de Glauber Rocha, a Memórias do Subdesenvolvimento, de Tomas Gutierrez Alea, passando por Vida Provisória, de Mauricio Gomes Leite. No entanto, são indivíduos, esses dos anos 60, que se desiludem. São personagens que tinham um grande projeto, um projeto para além deles, um projeto com eles e não deles, ao passo que, em Dedé Mamata, não há projeto algum à frente. Há apenas deslocamento e incertezas. Nenhuma ilusão para além de si. Também não se trata da correria de Manoel e Rosa em Deus e o Diabo na Terra do Sol (também de Glauber), quando as sucessivas rupturas com os espaços se dão com olhos em um adiamento da utopia, para quando o sertão virar mar. O deslocamento pode ser tanto sinal de potência, para quem diz não aos determinismos e à resignação, quanto também sinal de impotência, pois as tentativas de soluções, sem garantia nenhuma, sempre são acenadas para indivíduos, não para a coletividade.

É a potência do "cada um por si", o que, nos anos 90 e 2000, é bastante coerente com seu momento. Não podemos ignorar demandas de deslocamentos de diferentes naturezas, que podem ou não estar vinculadas a esses deslocamentos na diegese dos filmes. O mundo inteiro tem se deslocado mais, com diásporas e exílios de povos variados de populações de Ásia e África rumo a Europa. É uma espécie de zeitgeist, um espírito do tempo. Também se respira um espírito de movimentação mais ampla, em sintonia com uma fluidez das identidades e com um desejo de reciclagem e reconstrução dos percursos, que, parafraseando Bauman, criaria comunidades guarda-roupas em constante mutação.

Deslocar-se, nesse sentido, é sinal de mobilidade. Talvez, de potência. Uma recusa ao determinismo e a noção de vida estática. Pode-se ainda afirmar que, no world cinema contemporâneo, diásporas e exílios são as situações, por excelência, dos dramas de personagens estrangeiros ou sem nação. Tomemos como exemplos a consagração internacional de Neste Mundo, de Michael Winterbottom, que acompanha o percurso de um garoto árabe até a Europa, ou os filmes de região persa-curdo do planeta, como O Quadro Negro, da iraniana Samira Makhmalbaf, e Tempo de Embebedar Cavalos, de curdo Bahman Ghobadi, ou ainda as obras da Europa etnocêntrica como Lamerica, do italiano Gianni Amelio, ou Samsa, do francês Ziefried, ou ainda Canção de Carla, de Ken Loach, ou A Promessa, de Jean Pierre e Luc Dardenne – assim como tantos outros.

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Setembro de 2007

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