in loco - cobertura dos festivais
Delta (idem), de Kornél Mundruczó (Hungria/Alemanha,
2008) por Fábio Andrade
Autofagismo
automático, automatismo autofágico
Não é nenhuma novidade
que o cinema, como toda arte, é movido pela digestão de suas próprias partes.
Assim como esse processo autofágico é capaz de gerar obras-primas das mais estimulantes
(de Sergio Leone à Nova Hollywood; da nouvelle vague a Quentin Tarantino),
há profusão ainda maior de subprodutos automáticos que se escoram na derivação
como simples desejo de aparências. Delta deixa claro, antes mesmo de começar
o filme, seu centro de filiação: em uma das cartelas de abertura, lê-se um agradecimento
a Béla Tarr. Não é surpresa, portanto, que sua construção visual seja montada
sobre um fragilíssimo repertório de cacoetes: atuações esvaziadas à Robert
Bresson, elasticidade da duração aos moldes de Tarkovski, e um incessante desfiles
de nucas em planos médios. A adesão a essa gestalt de um “cinema de arte
moderno” pode até ser suficiente para o filme entrar em uma mostra importante
aqui (concorreu à Palma de Ouro, no Festival de Cannes desse ano), e levar um
prêmio especial acolá (o FIPRESCI, no mesmo festival). Com o natural desague do
repertório das mostras estrangeiras no Festival do Rio, ao espectador fica a estimulante
tarefa de separar a aparência, da substância. No
caso de Delta, todo o conceito (encenação, enquadramento, direção de atores,
fotografia) cuidadosamente construído por Kornél Mundruczó é casca grossa e bem
tramada que esconde, ao fim, um enorme espaço vazio. Mihail (Félix Lajkó) retorna
para a casa da mãe após um passado distante ao qual não teremos acesso. Lá, encontra
um novo lar com poderes plenamente estabelecidos: a mãe submissa, a meia-irmã
de olhos baixos cheios de afeto, e o padrasto tirano. Não resta muita dúvida,
portanto, qual rumo o filme seguirá no restante da projeção. Há, claro, uso intenso
de toda sorte de simbolismo: a construção da casa sobre uma ponte (conectando
mundos até então distantes, inacessíveis); a aproximação da irmã com uma tartaruga
(e sua capacidade de viver tanto na água, quanto na terra); os pães e peixes “multiplicados”
em uma tentativa final de confraternização com os habitantes daquele mundo; o
incesto; o sacrifício. Tudo ali para significar algo claramente definido, sufocado
pela impossibilidade de qualquer ambiguidade. Há,
sobretudo, um desejo de canonizar seus eleitos, construindo personagens de bom
coração, dispostos a perdoar a maldade alheia pela plena convivência. E há, também,
o mal. Se realizar um filme rigoroso e pouco inventivo não é nenhum crime (só
um tédio, talvez), há, porém, uma sequência em Delta que o coloca um tanto
abaixo da nulidade: quando o pai puxa violentamente a filha para fora de casa,
a câmera – até então concentrada em planos médios ou mais aproximados – se afasta
para um estranho plano geral. Um longo travelling acompanha os corpos que
se degladiam, até que o combate cessa. Corte para um close das coxas da filha,
cobertas de sêmen. O afastamento da câmera gera a incômoda sensação de que o ato
de violência, puro e simples, não importa tanto quanto a consumação do incesto.
Se o estupro não houvesse, a agressão física não seria suficientemente digna de
atenção. O raciocínio – visível e voluntário na construção do plano – expõe uma
lógica que, mesmo quando pensa a câmera, o faz em nome da perversão. Setembro
de 2008 editoria@revistacinetica.com.br
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