Viagem a Darjeeling (The Darjeeling Limited),
de Wes Anderson
(EUA, 2007)
por Francis Vogner dos Reis

Ainda relevante

Se tornou comum dizer que Wes Anderson se repete a cada filme. Mas, é necessário primeiro lembrar de uma questão e depois reforçar, criticamente, uma idéia corrente do discurso de seus detratores. A lembrança é de que seus dois primeiros trabalhos (Bottle Rocket e Rushmore), se não demonstravam um repertório diverso de seus três filmes posteriores, possuíam abordagens em que a exuberância plástica das cenas não existia para chamar tanta atenção para si, e tinham enfoques dramáticos menos esquizofrênicos porquê mais concentrados em um menor número de conflitos (e em menos personagens). De quebra, eram um exercício de estilo de vital originalidade no panorama de anemia formal em que se desenvolveram – o cinema indie americano dos anos 90 que, com três ou quatro exceções, foi uma geração perdida. Por isso seria um equívoco dizer que ele sempre fez o mesmo filme ou diminuir sua importância.

Mas, ao mesmo tempo, olhando com atenção a fase pós-Tenenbaums, ela é sim um período de diluição, cansaço e repetição, com um decór obsessivamente vintage/exótico, de um estilo narrativo e sonoro que se faz a partir de uma sucessão viciosa de clímaxes e com um abuso abertamente picareta na tipificação de personagens. O que era marca virou camisa de força? Apenas em parte, porque, pelo menos para quem é admirador de seu cinema, tanto em A Vida Marinha de Steve Zissou, quanto em Viagem a Darjeeling, ele consegue tirar beleza – e até alguma originalidade – de algo que até certo ponto parece esgotado: seu estilo e sua dramaturgia feita de sensibilidades muito específicas, que corre muitas vezes o risco de soar como um cansativo anedotário pessoal.

Sabemos que Wes Anderson entrou em uma via perigosa que é a do conforto do “estilo”, da “autoria de marca”, mas não precisamos lembrar mais do que um Tsai Ming-liang ou um Martin Scorsese - sem dúvida grandes cineastas, festejados, mas também cada vez mais preguiçosos. Diferente de seus colegas, Anderson ainda consegue imprimir ritmo e força ao seu material nos seus trabalhos mais problemáticos a partir de uma concepção mais estreita e burilada de composição pictórica, algo que sem dúvida tem menor impacto do que efeitos catárticos da multiplicação de pontos de vista (Scorsese) e do que o automatismo da duração do plano (Tsai). E se Wes Anderson está bem distante de Tsai Ming-liang, não está do que Scorsese já foi em O Rei da Comédia e Depois de Horas, filmes, como os de Anderson, com um ritmo feito por meio de blocos, mas que levavam em conta uma consciência exemplar do ritmo cadenciado de sua narrativa (e de seus limites).

Portanto, convém separar o joio do trigo: as qualidades de Wes Anderson ainda são maiores que seus problemas e Viagem a Darjeeling é o exemplo acabado disso. Mais do que A Vida Marinha, o novo longa de Anderson equilibra melhor virtudes (algumas, mas bem fortes) e vícios (muitos e perigosos). Anderson dá importância litúrgica a cada seqüência que encena, como se cada uma delas definisse o seu filme. Em Viagem a Darjeling a maior parte das cenas tem quase um valor ritual, nos ornamentos da cenografia e na insistência do personagem Jack em escolher a trilha sonora da cena em seu I-Pod. Ou seja: protelemos pelo menos até o próximo trabalho o temor pelo esgotamento total de seu cinema.

Desta vez não temos uma narrativa que se desenvolve mais especificamente em torno da relação entre a figura paterna e materna e sua prole, mas em torno do relacionamento entre três irmãos: Francis, Peter e Jack Whitman. O pai deles é falecido e a mãe desaparecida. Sabemos que os três não se dão muito bem, não se identificam o bastante para possuírem laços mais estreitos. O trio viaja no Expresso Darjeeling, um trem que atravessa uma estrada de ferro da Índia (e mais tarde saberemos que a viagem foi armada pelo irmão mais velho Francis para que pudessem procurar a mãe, que supostamente vive como uma freira nos confins daquele país).

Wes Anderson abre mão de uma comédia familiar em forma de crônica para adotar a pura aventura como processo de transformação de seus personagens. Seu novo filme, como os anteriores, ainda possui um caráter romanesco auto-referencial, é concebido e dividido como se fosse ficção literária, talvez porque seja a única maneira de dar conta de toda sorte de imagens e certa velocidade de pensamento e acontecimentos a que se propõe. Se em Rushmore e nos Excêntricos Tenenbaums a matriz literária era J. D. Salinger (O Apanhador no Campo de Centeio), e a mudança para a aventura em A Vida Marinha se deu via Jack London; agora, Anderson se desloca em direção a Mark Twain – que, sem dúvida, tem mais afinidades com o humor do diretor.

A trajetória dos personagens calha em uma busca frustrada (porque falsa desde o início) de um despertar espiritual. O sentido da busca se dá na experiência da aventura, em outras palavras, na ação. Não no modelo de ação de um action movie, mas em um movimento de jornada do próprio filme que concebe a vida como aventura, porque aberta, e por isso mesmo, de decorrências incertas. Assim, Viagem a Darjeeling integra ao mesmo tempo, a expectativa temerosa do nascimento de uma criança e o testemunho impotente da morte de outra. Como nos Peanuts de Charles Schultz (outra grande influência de Anderson, e não só dramaticamente), mesmo que amarga, toda experiência é generosa.

Wes Anderson é daqueles cineastas que os defeitos e as qualidades brotam do mesmo lugar. Esse necessidade de querer abarcar o máximo possível de sentimentos e elementos em seu filme (como Truffaut, dezenas de idéias por minuto) torna sua mise-en-scène em muitos momentos um tanto quanto pesada e entupida de informações (isso fica mais evidente nas cenas no interior do trem e no flashback da oficina). É admirável sua consciência de espaço cênico, seu esforço pela construção rítmica de sua narrativa e sua obsessão por composições pictóricas. Só que nesse desejo de ser e de ter tudo, muito do que poderia ser sinal de estilo, acaba virando fetiche.

Mas, mesmo assim, um cineasta que faz um filme como o que ele fez em Viagem a Darjeling depois que os personagens foram expulsos do trem até o funeral do garoto, não pode ser definido como um talento médio. Ali, tanto na economia formal (pra Wes Anderson, claro), quanto em uma certa filosofia da lealdade vemos aparecer aquele cineasta que dirigiu uma obra-prima chamada Rushmore e que nada tem a ver com certo cinema indie fofinho a que tentam hoje filiá-lo.

Outubro de 2007

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